terça-feira, 10 de julho de 2012

Fluxo Sanguíneo - um conto de raiva e vingança

Fluxo Sanguíneo - um conto de raiva e vingança

Escuto claramente o pulso impactante do sangue viscoso através de minhas veias e artérias. É um golpe forte, poderoso, que faz litros e litros do líquido ferroso correr através de mim, preenchendo cada capilar, levando vida a cada canto de meu corpo, e nesse momento mais específico, até além dele.

O sabor adocicado vem à minha boca mostrando que ainda estou viva, embora não por muito tempo. A vazão é constante e ouço os batimentos de meu coração, cada vez mais fora e ritmo, mas ainda lá. Começo a sentir frio, todavia não há dor, algo que eu não compreendo de imediato. Sinto apenas o frio, que se intensifica. Eu tremo e solto um gemido, não de dor, mas de tristeza.

Apesar do frio que me acaricia a pele e tenta levar minha consciência para longe dali, ainda lembro meu nome, Adriana, que tantas vezes escutei desde minha infância. Uma infância de menina quieta, embora sempre sorridente, de pele mulata e cabelos ao vento. Uma verdadeira mocinha recatada e com um olhar atento a tudo o que acontecia ao meu redor. Meu nome era sempre usado para demonstrar a boa menina que eu era, o quão educada eu era, o quão sorridente e comportada eu me colocava. Meu nome era dito com carinho. E a medida que eu crescia o nome continuava pronunciado com um tom suave, mas as intensões que eram impregnadas nas palavras não eram mais tão pueris e eu corava ao ouvi-las e apesar de muito satisfeita com as formas que meu corpo começava a apresentar, sempre soube me proteger e aceitar os lábios apenas daqueles que souberam me respeitar como ser humano.

Em minha pele apenas uns poucos escolhidos tocaram com carícias menos contidas e dentro de mim apenas entrou o valor de dois homens. E nesse momento um terceiro valor encontrou morada em meu corpo, uma lâmina fria, de um metal imparcial, cuja ponta aguda rompeu minha carne e a chapa afiada como palavras de violência cortava o tecido de minha epiderme, desvirtuando minha integridade, perfurou fundo, clamando com ódio pelo meu sangue e minha vida. Ela se alojou em mim.

Agora o pulso fazia jogar cada vez com menor intensidade o sangue e, pouco antes de meus olhos embaçarem, apenas um momento antes de me desligar da carne mortal, vi uma sombra, que em circunstâncias normais seria amedrontadora. Era um fantasma incorpóreo que segurava com uma firmeza inconstante o objeto que me roubava a vida.

Sua presença era tênue e tão palpável quanto um sentimento ruim e, enquanto olhava para mim, tentava agora sem tanta convicção, fazer com que a faca penetrasse mais e mais em minha carne.

Ali, perto de mim, era um fantasma e eu afirmo isso mesmo sem necessidade de convencer a ninguém. Sei disso porque noutra noite encontrava-me no banho e enquanto me limpava ouvi uma respiração profunda, bem próxima. Olhei ao redor, e também além da janela, não vi ninguém, nada que pudesse produzir tal som. Ouvi novamente a respiração e um ruído macabro que a seguiu, quase pronunciando meu nome - “Adriannnnnnnaaaa” - escutei e um calafrio percorreu meu corpo e mesmo na água quente fiquei arrepiada e me senti desconfortável.

Sai do banho e enquanto passava pelo espelho do banheiro eu o vi pela primeira vez. Não era definível, mas estava lá dentro, eu sabia, exatamente onde eu me entendia melhor. Reflexivamente olhei ao redor mais uma vez, sabendo em meu âmago que não encontraria nada.

De dentro do espelho eu vi olhos nas sombras. Era um olhar que me era familiar, que me trouxe emoções boas e ruins. Tentei, mesmo apavorada, me concentrar na imagem dentro do reflexo. Outro calafrio me percorreu e uma sensação paradoxal de desejo e medo interligados se apossou de mim quando no vidro vi Wagner.

Quanto amor eu não senti por ele? Por quê sua imagem me assombrava agora? Eu tentava encontrar alguma explicação científica para ver o homem de quem fui noiva, que me tornou uma mulher plena e que também me apresentou o medo como companheiro.

Wagner foi um grande amor. Talvez o primeiro amor verdadeiro que senti em minha vida, e ele também foi meu carcereiro. Ele me amava, tenho certeza disso, mas era um amor doentio, que só percebi corrompido muito tempo depois, quando seus rompantes de ciúmes começaram a transformar minha vida de um conto de fadas em um inferno de agonias.

Vivemos as maravilhas da vida e as dores do sofrimento, mas em determinado momento, consegui uma força além de mim e brigamos. E então, depois de muito tempo e muita dor física, mental e espiritual, consegui com que se afastasse. As marcas que ficaram em meus braços e meu rosto não foram nada comparadas às marcas deixadas em minha alma.

Ele tentou voltar comigo algumas vezes e, à exceção de apenas um único momento, onde deixei que meu amor por ele sobrepujasse meu medo, e onde mais uma vez ele mostrou que era mais monstro do que homem, consegui afastá-lo de meus dias.

Por muito tempo mantive-me constantemente em meu trabalho, lugar onde Wagner havia parado de vigiar, pois os seguranças conseguiram evitar suas visitas.

Foi nessa época que conheci Roberto, que me cativou com sua conversa gostosa, seu lindo sorriso e suas mãos grandes. Fomos apresentados por Silvia, uma amiga do trabalho com quem eu confidenciava alguns de meus momentos com Wagner. Não demorou muito e admito que me apaixonei por Roberto, talvez para preencher o vazio que foi deixado em mim, ou talvez porque ele me completava, me tornava inteira realmente. Aquilo era intenso e diferente.

Infelizmente Wagner soube de meu namorado e segundo me contaram, após beber muito além da conta ele estava tomado pelo ódio, um ódio diabólico que ultrapassava seu olhar, que tornava negra a sua alma. Foi-me falado que ele estava determinado a me matar e entrou em seu carro, e disparou em alta velocidade, e morreu ao se chocar frontalmente com outro veículo. O outro motorista e sua esposa também faleceram naquela hora.

Eu sei que não deveria, mas fiquei aliviada ao saber da morte dele. A partir daquele momento minha vida seria melhor, mais livre e com um homem que me amava e me respeitava.

Minha vida liberta e plena durou até o momento em que o ódio sobrenatural que Wagner nutria, aquele ciúmes diabólico, repleto de doenças emocionais e sua própria incapacidade de lidar com a rejeição, uma rejeição construída pedra a pedra por ele mesmo, ganhou força, escopo, determinação à medida em que minha felicidade junto a Roberto crescia.

Quando o fantasma nu de Wagner, etéreo, assustador, de coloração próxima a carne apodrecida e um odor repugnante de terra estéril, carniça e vermes, se apresentou à minha frente, na noite em que eu me preparava para comemorar dois anos de namoro, eu chorei copiosamente, uma onda de desespero tomou conta de mim, pois mesmo a morte não havia levado o homem que me feriu, que abusou de meu amor e que me prendia, que me impedia de ter uma vida.

Eu gritava alto, agudamente, desesperadamente. Gritava para ele me deixar em paz. Gritava com ele como nunca tive coragem de fazê-lo quando ele estava vivo. Ele não foi embora e por mais que eu quisesse eu não tinha forças para me movimentar, para fugir.

Os olhos espectrais dele cortavam minha vontade, feriam minha consciência, me tornavam ainda mais indefesa. Eu o temia e esse temor alimentava aquela sombra. Eu o amava e meu amor me prendia àquele chão. Eu o odiava e quando de súbito tive noção de que poderia direcionar aquele ódio para me libertar, senti a lâmina em meu seio, me matando. Ele havia finalmente roubado de mim, definitivamente, a minha felicidade, minha vida, minha esperança. Meu ódio tomou forma e então me desliguei do que eu era, tornei-me vazia, ódio e amor.

Wagner se foi. Quando concluiu o seu intento ele foi extirpado para sempre da existência, seu ódio o consumiu assim como a decepção de não ter vivido plenamente me consome.

Hoje vigio Roberto através dos espelhos, dos reflexos nas lâminas, por onde ele anda. Velo seu sono. Desde que ele arrumou um outro amor para ajudá-lo a suportar a dor de minha morte eu o vigio e à medida que o amor deles cresce, minha decepção e ódio crescem juntos.

Espero um dia ter a força que Wagner tinha e conseguir operar a faca que entrará fundo no coração de Roberto, mas também espero que quando esse dia chegar o amor que sinto pelo homem que me matou, o homem que desejo matar e o amor por mim própria superem meu ódio e decepção e que me impeçam de fazê-lo, libertando-me desses grilhões, permitindo que eu não seja consumida pelo ódio e que talvez, apenas talvez, encontre algo além, nessa inexistência do além vida.

terça-feira, 12 de junho de 2012

A Derradeira Canção dos Pássaros de Fogo - Um texto sobre uma aventura de Changeling, o Sonhar.

Esse texto foi utilizado para finalizar uma saga que narrei, a muitos anos atrás, de uma aventura de RPG de Changeling: the Dreaming, ou Changeling: o Sonhar.

Na aventura um grupo de seres que lutavam para não esquecer sua herança feérica e não tornarem-se banais, consumidos pelo outono das eras, sobreviveram às maiores buscas que os heróis poderiam fazer.

De maneira resumida a aventura foi desenvolvida para eles encontrarem um grupo de pequenas estátuas de pássaros, feitos com vários tipo de pedras diferentes, através de perigos reais, imaginários e políticos. E quando a última ave foi conseguida, elas se uniram e tornaram-se uma grande Fênix, de pedra e fogo, que revelou o "segredo" do jogo.

É importante dizer que para um Changeling, o seu nome real significa a essência básica da existência dessas criaturas feitas de pedaços perdidos de sonhos passados. Nomes tem poder, e quem conhece o nome real deles, controla suas vidas.

Essa foi a última canção dos pássaros de fogo, conforme ocorreu em sessão de jogo:
_____

Os dias de glória das fadas são longos
Enquanto os heróis continuarem a lutar.
Nós os saudamos guerreiros audázes
Que os tambores por vocês venham sempre rufar.

O sonho dos homens criou vida forte
E a espada mesquinha de alguns a tirou.
Sete pecados que são sete mortes,
Setes senhores que o destino esperou.

Senhores elfos que mataram seus pais
Em tempos sobrios e na traição.
A eles desejamos que não haja mais paz
Seus nomes diremos pois sabemos quem são.

E não apenas como são chamados -
Pois seus nomes reais serão ditos também
Mas tenham cuidado com os nomes sabidos
E que seus corações os utilizem para o bem

Abraão, o forte, da casa Dougal,
Seu nome é Aalard nos dias de luz.
Conspirou com os outros tornando-se mau
Matou seu senhor e agora os conduz.

Alexandre Folha Verde, um conde do norte
Que tornou-se lorde com seu ato medonho.
Em um setembro passado foi mensageiro da morte.
Axeile é seu nome, escrito no sonho.

Carlos o Demente, que de um olho é cego.
Para atingir o seu posto foi preciso matar.
Em conchavo com outros ele disse: "Eu nego" -
Quando foi encontrado, e seu nome é Cadmar.

Daniel o Senhor das Fontes, visto foi ele
Saindo do quarto de seu mestre a chorar.
Dannain é o maldito nome dele,
Que culpou um criado, do conde matar.

Gilson Grande Céu, aquele que ri,
O que não tem medo do que é guardado.
Gaidon é seu nome, gravado aqui -
Em minha memória como foi me contado.

Silvana Doce Véu, a senhora dos ventos,
Aquela que o sonho não há de esquecer.
Traiu sua graça por simples momentos.
Solaberge é o nome que a fez viver.

Úrsula a Bela, do rosto perfeito -
Que seduziu o senhor o qual ela matou.
Ursane é seu nome, assim por direito.
E espera a morte, pois ela o amou.

Assim terminamos esse conto tão triste,
Mas temos certeza de que em boas mãos estará -
O destino de sete, cuja honra em riste
Enfraquece com o tempo pois agora não há -

Sequer um momento que não se sintam fadados
Ao fracasso, ou quem sabe a coisa pior.
Sabemos que heróis como vocês são honrados
E que seu destino será sempre o melhor.

Mantenham-se unidos se assim desejarem,
Ou afastem-se para sempre se for do agrado,
Mas no caso de juntos e glórias abordarem,
Lembrem-se de nós que estivemos ao seu lado.

Do passado nós somos apenas memória.
Guardamos segredos que tentaram esconder.
Não vemos o futuro, mas temos certeza
Que seu destino lhes guarda aventuras e prazer.

Adeus meus senhores não diremos mais nada
Que possa incutir dúvida em sua mente.
Sigam sua vida de maneira inesperada
E que morfeus os aceite no sonhar novamente.
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quarta-feira, 6 de junho de 2012

O Rastro da Sombra Rubra – Um conto nos mythos de Cthulhu

Não houve sequer um dia em minha vida que aquele terror do passado não viesse à minha frágil mente. Nas horas sombrias da noite, as imagens funestas de meu passado me assombram, com seu rastejar maldito e os sons guturais que permeiam o que ainda sobrou de minha debilitada sanidade.

Passei uma boa parte de minha juventude em uma casa de reabilitação mental, um manicômio, caso queiram usar o jargão popular, minha família não acreditou em mim, nem os médicos ou meus amigos, apenas Samanta sabia que eu dizia a verdade e ela estava em pior estado do que eu, quando nos encontraram.

Já faz três anos que ela morreu e eu agora estou velho e indo ao seu encontro, assim como também me reencontrarei com minha saudosa esposa Odete e meu filho Júlio, que faleceu ainda jovem, devido à pneumonia.

Conto o que aconteceu porquê mais cedo ou mais tarde, quando a noite derradeira se apossar de mim, a fazenda, que é de minha posse, no interior do estado, será passada aos meus descendentes, e eu não desejo que eles entrem naquele terreno amaldiçoado.

A muitos anos eu era um jovem estudante de direito e andava sempre com o mesmo grupo de amigos, também jovens, inteligentes, audaciosos e com uma queda para o estudo das artes ocultas. E foi Milton que encontrou o ídolo de marfim semelhante a um disforme touro com oito patas e cabeça de besouro. Foi ele que invadiu a biblioteca da universidade e durante a noite estudou o profano livro de magias conhecido como De Vermis Mysteriis. E foi Milton que nos convenceu, sem muito esforço devo admitir, a fazermos o ritual de conjuração da entidade que era aprisionada no ídolo.

Todos aceitamos com entusiasmo, mesmo descrentes de que haveria realmente uma entidade naquele pedaço de marfim. Valeria a viagem, a diversão e uma folga dos terríveis afazeres que havia na faculdade. Eu ofereci uma fazenda, de posse de minha família, no interior, para compormos aquele jogo e para lá nos deslocamos.

Tudo era levado com seriedade pela maior parte do grupo. À exceção de Samanta, que estava lá apenas para nos premiar com sua bela aparência e formas esculturais, que ainda possuía uma extrema capacidade de raciocínio e observação.

A noite era perfeita para aquilo que achávamos que seria apenas uma brincadeira. Lua cheia, nuvens distantes e o brilho constante de relâmpagos no horizonte. Desenhamos os símbolos necessários para aquele ritual, acendemos várias velas e nos sentamos na borda dos desenhos. Estávamos em um dos quartos que ficavam no andar de cima da casa principal da fazenda.

Milton iniciou o cântico profano. Em suas mãos estavam as anotações do livro De Vermis Mysteriis. Eram páginas copiadas com paciência, repletas de marcas e guias que não permitiriam ao conjurador, a figura do Rei, a pedra, o sol, de se perder. Milton havia lido exaustivamente aqueles parágrafos medonhos por noites a fio.

A voz de meu amigo era ritmada e as palavras pronunciadas em uma mistura de um latim precário, com passagens em árabe e trechos em uma língua que não eu reconhecia por completo, mas que provavelmente era dos homens de Leng, com sons assobiados e uma melodia ininteligível aos meus ouvidos.

Até aquele momento tudo não passava de uma sombria brincadeira. Samanta soltava discretos risinhos ao meu lado, mas Judite sentia seus ossos doerem. Era possível escutar o chacoalhar de suas pernas, braços e mandíbula. Ela, que obviamente estava naquela situação apenas por gostar de William, perdia suas forças à medida que o tempo passava.

Quanto a mim, eu ainda era um cético com um toque de estranheza. Eu via aquilo como uma grande farsa, um jogo muito bem orquestrado por Milton.

Quando o pequeno ídolo de marfim começou a soltar um constante zumbido, e a luz das velas pareciam se movimentar com um vento fantasmagórico que não soprava e não sentíamos, então sim, comecei a duvidar que meu ceticismo e minha descrença fossem realmente tão arraigadas aos meus conceitos. Um sorriso nervoso brotou em meus lábios, o suor fluía de minhas têmporas e de minhas mãos, tornando-as escorregadias, o que deixava difícil segurar a pequena faca e o pedaço de corda grossa de cânhamo com um nó simples que eu deveria manter firme durante todo o ritual.

O cântico continuava e sua intensidade crescia a cada palavra proferida. Milton era tomado pelo prazer de fazer parte daquele caminho que não deveria ser percorrido. As palavras eram gritadas e os olhos de meu amigo estavam tão abertos que parecia que seus globos oculares saltariam de suas órbitas.

Samanta gargalhava como uma louca, gargalhava de uma forma que não conseguia se conter. Seus dentes expostos em um sorriso macabro, sua respiração trabalhando parcamente entre um surto e outro de risadas histéricas, seus olhos estavam extremamente vermelhos, marejados, possuíam uma aparência demoníaca. Recordo-me hoje, posso dizer, que ela estava fora de si, mas de alguma maneira parecia que pedia ajuda, gritava por socorro, com aquele olhar assustador.

Judite mostrava um comportamento extremo como o de Samanta, mas de outra maneira, ela chorava copiosamente. Chorava tão intensamente que suas lágrimas banharam seu vestido. Seu corpo tremia cada vez mais, de uma maneira que eu jamais havia visto na vida. Eu queria ir em seu auxílio, mas não conseguia me mover, ou não queria me mover, ou tinha medo de me mover, não sei precisar. Ainda vejo em minha mente, agora, mesmo anos depois, como ela colapsou no solo, debatendo-se tal qual uma mulher possuída por seres imateriais. Seus braços e pernas chocavam-se tão violentamente contra o solo que não demorou muito para ouvirmos o som característico de ossos partindo, mesmo com todas as palavras gritadas por Milton. E ainda com os ossos quebrados e berrando de medo e dor, o espetáculo macabro não se findou, pois Judite não se acalmou e continuava em seu embate sobrenatural.

Aqueles movimentos inumanos, próximos do impossível, traziam-me náuseas, que tornaram a profusão do suor mais intensa, ensopando meus trajes, fazendo-me sentir imundo. Minha garganta estava seca, arranhava a cada respiração e o vento inexistente soprava mais forte levando a luz cada vez mais para próximo do ídolo de marfim, que zumbia, zumbia, zumbia e nos deixava loucos.

Segurei com força os objetos que estavam em minhas mãos e busquei ignorar as sombras dantescas que se formavam ao nosso redor. Imagens fugidias de criaturas não nascidas apareciam e desapareciam nas paredes e eu poderia jurar que buscavam mastigar minha alma.

Aquela torrente de informações nos açoitava mais e mais e então o ídolo de marfim tornou-se azulado e depois vermelho e por fim se rachou em cinco distintos pedaços.

Milton cessou seu cântico e deixou seus braços caírem ao seu lado. Samanta conseguiu controlar seus risos histéricos e respirava profundamente, extremamente cansada, enquanto Judite não esboçava nenhum sinal, não se movia, não parecia estar viva. Eu prendi a respiração.

Foi quando vimos que Judite começou a se movimentar, contudo ela se movimentou de uma maneira inimaginável, e mesmo naquela luz bizarra percebemos que seu corpo inerte era levantado ao ar por presas obscuras, de formato duvidoso, mas com força suficiente para arrancar grandes nacos de carne do corpo de Judite.

O grito que Samanta proferiu ao ver nossa amiga ser devorada nos despertou daquele torpor de assombro. Segurei o braço de Samanta e a puxei para fora da casa. Não tenho vergonha de dizer que eu estava apavorado, que o medo que eu sentia daquele mal sobrenatural me deu forças para correr daquele lugar maldito.

O desespero então se apossou de mim. Olhei para trás uma vez e vi a sombra disforme que se movimentava de uma maneira completamente diferente do que eu já havia visto. Havia patas que patiam no solo como o tambor tocado por mil homens condenados, mas não se movimentava apenas com elas, também se arrastava com sua enorme barriga, de cor de sangue, um sangue vermelho escuro, apodrecido, que exalava um fedor macabro, vindo direto dos reinos da morte. O arrastar era muito mais angustiante do que o andar. E eu corri, como jamais havia corrido em toda minha vida.

Samanta caiu e recebeu um corte profundo na parte interna da coxa. Gritou de desespero e dor, admito que por muito pouco não a deixei lá. O medo que preenchia meu corpo era tão avassalador que eu não conseguia pensar direito. Exitei, parei por um momento e com forças que me eram desconhecidas consegui fazê-la correr novamente. Não importava a quantidade de sangue ou a dor que ela sentia, ela devia correr, e correr o mais veloz que seu corpo aguentava.

O andar macabro e o rastejar alienígena da monstruosidade se aproximavam e quando veio num átimo que não haveria salvação, a criatura parou de nos perseguir. Observei incrédulo aquela besta abissal urrar de ódio e fome, aquele som me deixou com os cabelos brancos instantaneamente, mas vi que ela não chegou a atravessar o pequeno regato que havíamos ultrapassado poucos instantes atrás.

Não perdemos tempo especulando sobre se seria possível ele atravessar ou não aquela corrente de água, fomos embora, mas nossas mentes estariam maculadas para sempre com a consciência da existência daquele horror, que agora vagava pela terra onde nasceram meus avós.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

As Crias de Vesta Draconis - Um conto de ficção científica

O traçado fulgurante dos torpedos de fóton riscavam aquele céu negro, pontilhado de estrelas, espantosamente brilhante e com um belo planeta verde avermelhado, repleto de fabricas e vida, como pano de fundo. A emboscada foi perfeita, nenhuma das muitas horas de cálculo haviam sido desperdiçadas. Todas as naves foram transportadas sem falhas para o sistema Plena XI e o alvo estava no lugar estimado, em tempo de cálculo de transporte, parados, graças aos vários espiões do Sefirot do Conglomerado Mainard além das fronteiras do Qlifot do Principado da Estrela da Manhã.

Como deveria ser todos estavam confiantes e assim que os motores de hiperpropulsão emitiram seus estampidos característicos da desaceleração, a uniformidade da esquadra foi verificada, a contagem e sinalização pós salto foi acionada e as comportas de torpedos e silos balísticos foram abertos. De imediato os milhares de raios de ondas coloriram o espaço com sua claridade magnificamente cegante, quase inutilizando os sistemas primários dos dez grandes transportadores de tropas que eles atingiram. Alvos grandes, lentos e fáceis, mas não menos perigosos.

Os campos eletromagnéticos que circundavam as naves de transporte se incendiavam com o choque dos raios e geravam um grandioso espetáculo bélico. Nem mesmo as auroras de Beta Antaris eram tão fascinantes, embora aquele visual era etéreo e rapidamente se desfazia, em radiação e centelhas incandescentes, apenas para preparar o terreno para receber o voleio de cargas explosivas em seus cascos enfraquecidos.

As explosões fotônicas não poderiam ser jamais descarregadas  em atmosfera planetária, não de acordo com os regulamentos assinados entre os senhores dos setores mas ali naquele espaço cósmico, geravam interferências em todos os instrumentos não mecânicos, isso tornava impraticável os saltos e impossível as comunicações convencionais entre as naves das duas frotas.

Quando os cascos dos dois primeiros transportadores racharam, expondo suas entranhas de metal, elas expeliram para o vácuo gelado e radioativo os milhares de combatentes que eles carregavam.

Muitos dos corpos daqueles homens e mulheres eram vaporizados instantaneamente quando os raios de ondas rasgavam o espaço, desintegrando as estruturas menos densas e queimando como uma fornalha radioativa contra os resquícios dos campos gerados pelas naves.

Era esplendoroso, o auge da tática, o início de uma vitória naquela batalha.

A gravidade do enorme planeta “abaixo” compunha as notas finais naquela sinfonia de luzes e explosões, atraindo para si as carcaças das enormes aves de metal e porcelana abatidos em combate.

Trinta de nossas naves da classe Leviatã não haviam sofrido qualquer tipo de avaria nos primeiros minutos do ataque. Nas naves da classe Beemote e Ziz as baixas eram mínimas, não mais do que dez naves secundárias e vinte e três terciárias.

A resposta de fogo do Qlifot veio inconstante e debilitado, com raios de ondas supra moduladas e ortogonais múltiplas, que tiveram a sorte de atravessarem sem interferência alguns dos campos eletromagnéticos de seis Leviatãs. As tripulações foram abatidas imediatamente, cozidas pelas microondas. Os heroicos tripulantes não sofreram ao padecer, pois sabiam dos riscos de sua missão. As Leviatãs afetadas remodularam mecanicamente seus campos e não tiveram seu interior aberto ao espaço, mesmo quando os torpedos do inimigo acertavam seus cascos. A tecnologia inferior do Qlifot não era páreo para nossos armamentos e defesas.

Durante aquele embate os matemáticos práticos haviam repassado as informações de posicionamento, gravidade e todas as variáveis cabíveis e importantes para o controle de armamentos. As coordenadas para os mísseis de plasma estavam calculadas e o trabalho manual dos marinheiros era extremamente coordenado. Os mísseis saíram de seus silos a velocidades enormes, mas ainda sub luz. Quando suas cargas mortais engolfaram as naves inimigas, novos sóis surgiam por vários segundos. A maior parte dos escudos deles aguentaram aquele castigo, entretanto houve o derretimento incontinênti de dois outros transportadores.

O fascínio que aquele espetáculo gerava em nossos marinheiros deve ter sido superado apenas pelo medo no coração dos atingidos pelo fogo.

E foi assim, que durante toda a primeira parte daquela emboscada que não houve reação útil contra a armada e então naquele momento, centenas de milhares de minas de quantum foram despejadas no espaço, no weltraum. Era uma tática arriscada, que havia sido prevista por nossos matemáticos com chance de acontecimento de menos de um porcento. Minas de quantum são armas incontroláveis e não tendiam a obedecer seus senhores, todavia aquelas aberrações, de alguma maneira demoníaca pareciam seguir ordens bem estruturadas. Com a atração magnética elas seguiram para a frota Sefirot

As implosões de quantum arrancavam enormes quantidades dos cascos das Leviatãs e Beemotes e praticamente engoliam as naves da classe Ziz. Nos sensores que ainda funcionavam notávamos muitos capitães desaparecerem da existência durante aquele ataque.

As armas de ondas foram recalibradas com rapidez e competência para atingirem as minas, enquanto os torpedos de fóton e mísseis de plasma, o suprassumo do armamento do Sefirot continuavam a castigar a armada Qlifot.

A almirante Vesta, que até aquele momento mostrava-se completamente confiante no desenrolar dos planos conforme traçados, fez o primeiro movimento fora da precisão matemática que era sugerida pelos estratégicos até o momento. Seus comandos fizeram jus ao nome que carregava, sua genialidade era conhecida por todos os pontos da galáxia, de todos os lados das guerras que eram travadas nesse período histórico da humanidade.

Através da comunicação mecânica as primeiras ordens foram difundidas. Os feixes de raios de todas as naves do Sefirot cessaram simultaneamente. Toda energia foi transferida para os geradores de campos. A interferência eletromagnética foi cortada e as ordens completas passadas diretamente a 10 naves Beemote e 20 naves Ziz, além de um dos enormes Leviatã.

Não houve hesitação quando as ordens foram recebidas. A comunicação entre os capitães e seus subordinados ocorreu sem demora e mais que prontamente as naves de colocaram em movimento. Em cada uma das embarcações a canção dos heróis foi cantada e seus escudos ampliados ao máximo de suas potências.

As outras naves reiniciaram o disparar incessante de raios, de torpedos e mísseis. Já os responsáveis pelo movimento fizeram um bloqueio, chamando para si todas as minas de quantum possíveis. As implosões pareciam não ter fim. Em menos de dez minutos os capitães e suas naves foram dizimados. Não havia mais minas de quantum nas proximidades. O ataque da armada do Sefirot então não teve mais limites. Não seria mais possível exterminar todos os transportadores, mas nem todos sairiam ilesos.

Um a um os gigantescos transportadores eram abatidos.

Então uma enorme boia de bolha de salto foi ativada e duas das naves do Qlifot conseguiram saltar e fugir. Era o fim da batalha.

A cena que se seguiu mostrava a força, a capacidade e a extensão do poder do Sefirot do Conglomerado Mainard. As naves entravam em formação mais uma vez e a sinalização feita para que os cargueiros de salvamento e limpeza, da classe Carniceira, viessem resgatar todo o metal e corpos das embarcações abatidas. Tudo o que não havia sido consumido pelo fogo matemático ou pela gravidade do planeta, deveria ser reutilizado ou levado para os serviços religiosos oficiais. Nossos homens e mulheres que morreram em serviço seriam velados como heróis.

Segundo estimativas mais de três milhões de soldados do Qlifot do Principado da Estrela da Manhã foi morta e não menos do que quinhentos mil membros do Sefirot perderam sua vida naquela batalha.

Em nossa nau capitânia a sagrada bandeira do Conglomerado Mainard foi hasteada, o hino do Conglomerado foi entoado alto e claro, reforçando a confiança que tínhamos na fé do  Sefirot. Ainda éramos conhecidos como os temidos Crias de Vesta Draconis, o melhor batalhão de todo o weltraum e que nossos inimigos tremam quando ouvirem nosso nome.

Cárdu Remo, jornalista oficial do sagrado Sefirot do Conglomerado Mainard.

terça-feira, 22 de maio de 2012

A Casa - um conto curto de Mago o Despertar

A casa era velha, maltratada, realmente sem cuidados, mas mesmo com tantos detalhes negativos, ainda se percebia que quando foi construída, o luxo imperava em seu interior.

Após a morte de seu idealizador, um velho octogenário cujos sentimentos de adoração pela casa sempre foram imensuráveis, ela adormeceu e em seus sonhos atraía toda a sorte de vida para partilhar com eles a consciência de sua existência, para protegê-los das intempéries do tempo, da insegurança do lado de fora. E ela os protegia e os impedia de viverem além de suas paredes, e então eles pereciam... E então ela arranjava novos moradores, para proteger.

- Dekla, me conte novamente o motivo imbecil pelo qual nós viemos aqui hoje.

- Para saber por que o gato de Hesat não retornou para casa nos últimos quatro dias.

- Muito bom saber disso. É muito bom saber que eu transcendi às barreiras da realidade, ultrapassei os domínios do abismo, escrevi meu nome na Torre do Espinho Lunargent, canto a canção de Arcádia, e controlo o Tempo e o Destino de nações simplesmente para encontrar a merda de um gato?

- Você é muito melodramática Meza. Você sabe muito bem que a “merda” do gato está vivo a mais tempo do que nós quatro juntos e que ele conhece mais segredos do que seu mestre.

- Um absurdo! Um absurdo!

- Ah, cala a boca, ninguém te chamou para vir conosco, você veio só porque teve aqueles sonhos escrotos e ficou com medo.

- Parem vocês dois. Meza Virs, fique quieta, você devia estar aqui hoje, você sabe disso. Indra, pare de pegar no pé dela, senão vai se ver comigo... E com Hesat.

- Merda. A merda do gato está aí dentro dessa tapera, dessa casa caindo aos pedaços?

< entrem... entrem... entrem... aí fora é perigo... entrem >

- Ahura, você pode fazer alguma coisa para impedir que a casa caia em nossas cabeças quando entrarmos nela?

- Sem problemas, chefe.

- Vamos entrar. Olha, a porta está aberta, só pode ser o destino mesmo. Hehehe.

- Que cheiro podre é esse? Ahura, não tomou banho hoje?

- Mesmo com essa piada infame, de certa forma ainda está certa. Há morte por aqui.

< fiquem... durmam... eu protejo... >

- Quem fechou a porta? Bater essa porta desse jeito vai trazer o teto abaixo! Quem foi o imbecil?

- Merda... O gato tá morto.

< ele queria sair... gatinho... lá fora é perigoso... eu cuido... eu cuido de vocês também >

- Quem trancou a porta? merda! Ela não abre de jeito nenhum. Tentei apodrecer a porta, mas não consegui. Tem algo muito errado aqui.

< isso machuca... eu não importo... eu cuido... mesmo quando machuca eu cuido... >

- É só eu ou alguém mais acha que estamos com problemas?

- Tem uma Fronteira aqui. E acho que alguém, ou alguma coisa não quer que saiamos.

- É. Estamos realmente com problemas, e por causa da merda de um gato.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Atormentado - Um conto do Mundo das Trevas

O canto ritmado na língua hebraica afastava o frio sobrenatural daquele junho seco. Todas as treze pessoas que formavam o círculo vestiam túnicas de um vermelho intenso, algo que se tornava espectralmente chamativo à luz das cento e trinta e nove velas que iluminavam aquele grande quarto, no segundo andar do belo casarão.

O bem cuidado lote de terra ficava em um dos pontos mais altos daquele lugar, o que proporcionava uma vista sem igual de praticamente toda a região, mas os cultistas, seguidores da cabala negra, denominados “O Gosto do Lírio de Baphomet”, que nesse momento entoavam o cântico cadenciado de evocação de uma das sombras de Nahemoth, não estavam preocupados com a bela vista que aquela chácara oferecia, e mesmo que estivessem dispostos a olhar a paisagem não poderiam, pois a decoração funesta que preenchia todo o quarto também havia se fixado às janelas e cortinas, grossas e pesadas.

Para a evocação do ritual foram afixadas línguas humanas por todo o cômodo, que se prendiam às paredes com pregos de ferro, velhos, já enferrujados, feitos por mãos diabólicas, mãos que jamais tocaram este mundo.

Um forte cheiro de sangue e incenso penetrava nas narinas dos cultistas e isso os entorpecia, transpondo seus sentidos para um outro mundo, um mundo de sombras, alucinações, criaturas não-nascidas e que jamais morreriam.

Suas vozes absortas em suas próprias essências atravessavam as barreiras que separam os mundos, formando um túnel etéreo por onde a voz de sua líder, Demetra Kandake, ali conhecida como Sophia Maior, pudesse percorrer o infinito e encontrar uma única entidade dentro daquele mar caótico e primordial, e como tiros que iluminam a escuridão astral, a voz de Sophia Maior tocou como um soco a existência de Nahemoth, que se virou e observou a passagem etérea.

Em uma das pontas desse túnel inexistente estava Nahemoth, um dos anjos negros e na outra ponta, desacordado, ferido, indefeso, estava Paulo Marley, que seria entregue em sacrifício para que sua alma alimentasse de mortalidade uma sombra da entidade, uma parte ínfima, do todo que é Nahemoth, e essa sombra permaneça próxima do mundo físico, no intento de que as ambições do Gosto do Lírio de Baphomet e de sua sacerdotisa, Sophia Maior, fossem alcançadas. Contudo o grande erro dos mortais é confiar plenamente em suas capacidades de compreender entidades e mundos além de seu escopo de existência.

A canção funesta, composta por frases proibidas e palavras dignas de ojeriza, ganhou mais corpo, e num crescendo maldito chegou a seu ápice quando a faca, extremamente bem decorada com detalhes mórbidos e nomes blásfemos e de fio impecável, percorreu o espaço, guiada pelas mãos unidas de Sophia Maior, penetrando profundamente no peito nu da oferenda ao anjo negro.

Paulo Marley sentiu a lâmina fria em sua carne e tentou em vão, apenas por um instante, muito mais por ato reflexo do que por consciência do que fazia, se desvencilhar de sua posição. Não conseguiu e no momento seguinte imaginou sua alma deixando seu corpo e sua vida se esvaindo.

Antes de sua morte final teve consciência da presença negra de Nahemoth, de uma idéia de fragmento da sombra, alojar-se em seu íntimo.

E então morreu.

Na mesma noite, os cultistas levaram o corpo da vítima do sacrifício para um lugar ermo e lá o enterraram, deixaram seu cadáver oculto, onde jamais pudesse ser encontrado, perdido para sempre, sem identidade, sem paradeiro para seus conhecidos.

Três noites depois do ritual, a terra do sepultamento profano se revolveu e revelou um ser atormentado, com uma partícula demoníaca de existência extradimensional a amaldiçoa-la com vida, uma vida morta, sem calor, sem amor, apenas a dor de estar morto. A fome que Paulo sentiu era profunda e excruciante e ele sabia onde deveria se alimentar.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Brasília: O Planalto Selvagem

A alguns anos narrei uma campanha no cenário Lobisomem: os Destituídos (Werewolf: the forsaken). Então escrevi essa história em 2007 e a postei no site http://vankman.atspace.com

Sons no Cosmo - Um conto de ficção científica

Nunca havia silêncio no espaço cósmico. Podia haver paz, tranquilidade, calma e a mais completa e extrema solidão, mas silêncio jamais havia. Naquele vazio sem fim, margeando um sistema estelar a quase mil anos luz de distância de sua casa de verdade, o tenente Carlos Andrade pensava nos sons que ouvia - o zumbido do reator da nave, constante, melancólico, confundindo-se com os sons do sistema eletromecânico, os sons dos filtros de ar e água, do péssimo sintetizador de alimento, que ninguém chamava de sintetizador de comida, pois comida tem cheiro, sabor e textura agradável, e não aquela pasta insossa e desagradável, a razão do porquê mais de 90% do que era consumido na nave era trazido à bordo já semipreparado, e apenas quando acabava a comida é que os tripulantes se viravam para o que eles apelidavam de lixo. A maior parte dos cosmonautas entrava em depressão ao final de viagens longas ou com excesso de tripulação por causa do que teriam de comer ao final da jornada. Mesmo quando estavam fora da nave, nos trajes de passeio em gravidade zero, havia o barulho da respiração e das fortes batida do coração, mas silêncio mesmo nunca existia. Andrade postulava que o barulho era algo inerente à vida, aonde o ser humano ia na imensidão negra do cosmos, o som estaria sempre lá, como companheiro.

O Ten. Andrade era engenheiro eletromecânico da espaçonave de apoio científico e pesquisas Ganimedes, e naquele momento ele estava em um bom período de folga, lendo alguns textos técnicos, revendo as plantas e projetos das principais partes da nave que era responsável e ouvindo os canais de comunicação quando, entre uma página do guia Hoffen-Kaneda de refrigeração  de motores e um capítulo de Uma Breve História do Mundo, ele quase despercebidamente ouviu um chamado bem diferente dos corriqueiros pedidos de ajuda e manutenção nas transmissões de outras naves com problemas. O sinal estava fraco e cheio de interferências, apesar dos mostradores  indicarem uma portadora bem feita e razoavelmente próxima, menos de cinquenta anos luz. Não se via nitidamente a imagem do transmissor, apenas um borrão repleto de deformidades e quadrados pretos e um som preenchido com estática.

“Olá, tem alguém me ouvindo? Olá?”

A voz era feminina, dava para perceber mesmo com toda interferência.

“Se houver alguém me ouvindo, responda”.

Andrade afastou os documentos que lia e se fez a requisição para ampliar a qualidade da comunicação. “Aqui é a nave de apoio Gamimedes, você está em um canal de comunicação oficial, mude para os canais públicos imediatamente”.

“Finalmente! Alguém me ouviu!”

E então imperou a estática. Andrade ignorou a súbita perda da comunicação e mesmo com a curiosidade que se instaurou, ele colocou o modo de transmissão em segundo plano e trouxe os documentos que lia anteriormente. À noite, os geradores de campo embalavam o sono do tenente.

O incidente já havia desaparecido de sua mente a mais de uma semana quando durante o almoço, a comandante tenente Delacroix comentou com o primeiro sargento Gaziri sobre uma transmissão em canal oficial proveniente de pessoa não autorizada, que desapareceu tão rápido quanto surgiu.

Andrade então procurou os registros da primeira comunicação de dias atrás e os comparou com os do horário dito pela comandante. Então modificou dois dos comunicadores terciários para reforçarem os sinais do tipo de portadora utilizado e confeccionou gatilhos para enviarem respostas automáticas conforme houvesse uma conversação.

E no terceiro dia após as modificações, quando chegou a seu quarto, o sinal de disparo do gatilho estava alarmado. Mais que rapidamente chamou a comunicação gravada. A estática foi atenuada graças aos filtros Mitesh instalados nos comunicadores. Até mesmo a imagem tornava-se menos embaralhada e mostrava uma moça jovem, que aparentava pouco mais de vinte anos de idade, com curtos cabelos castanhos e olhos de cor violeta.

“... aqui é Naili, falo de Katrin, cidade estado do continente secundário de Titânia Primus.”

“Aqui é o tenente Andrade, da nave de apoio Ganimedes, você sabe que está em um canal não autorizado para civis.”

“Oh céus, sim, escutei isso, mas não consigo um canal diferente, nenhum deles atravessa os campos, tem muita interferência ultimamente.”

“O que você quer Naili?”

“Quero apenas conversar com o mundo externo.”

E então a comunicação cessou. Andrade congelou a imagem de Naili e adicionou novos filtros para coloca-la mais nítida, e viu que ela era uma mulher que fazia sua respiração mais intensa e profunda. Deitou-se ainda com a visão dela pairando sobre ele. Os estalos distantes de manutenção não atrapalhavam seus pensamentos e então dormiu profundamente.

Por mais de três meses padrão o Tenente Andrade e Naili conversaram todos os dias. Ou em tempo real ou através dos gatilhos de gravação. Ela contava sobre sua vida, sobre seus estudos, de suas pesquisas em psicologia, de como o sol estava sempre belo em seu planeta e de como seu povo era extremamente fechado, praticamente xenofóbico, dentro de seu próprio mundo. Falava que não queria mais ficar ali, nem gostaria de ter filhos naquele lugar tão distante, que apesar muito bonito, a fazia se sentir isolada.

Ele falava sobre sua profissão, seus gostos, sua paixão pelo som do cosmo e como o irmão mais velho o influenciou a entrar para a frota, depois que ele se formou em engenharia e dizia que em menos de um mês voltaria para a principal porção de terra de Delia Argenti, a lua habitável de Epsilon Major, seu sistema natal. Falar de ir embora, algo que ele desejou por tanto tempo, agora doía um pouco, pois ele sabia que um sinal com aquela qualidade não conseguiria ser direcionado para seu lar.

Os dias passavam e eles se tornavam mais íntimos com o tempo. Durante seu turno de trabalho Andrade lutava para retirar a voz e imagem de Naili de sua mente.

Faltavam apenas dezesseis dias para a Ganimedes retornar para a base estacionária em Epsilon Major para iniciar a troca de tripulação, quando um chamado corriqueiro de trabalho chamou a atenção do tenente Andrade. No sistema de comunicação interna da espaçonave o capitão Vital anunciava a partida para a manutenção e apoio a um gerador importante no planeta Titânia Primus. Seu coração bateu com mais força, sua mente elevou-se. Ele parou para prestar atenção ao ambiente, na esperança inútil de conseguir escutar o som dos cálculos quânticos serem feitos para a viagem entre os sistemas estelares. Após horas de matemática quântica e de armazenamento de informações, os motores foram disparados e em menos de um dia ele estava finalmente em frente ao imenso planeta azul esverdeado chamado de Titânia Primus.

Quando a comunicação retornou, Andrade chamou imediatamente o sistema para avisar a Naili de sua chegada. Ela deu saltos de felicidade, alegria real, vívida. Ele se sentia nervoso e feliz. Eles marcaram as coordenadas para se encontrarem.

Enquanto a equipe de manutenção do gerador iniciava o preparo, Andrade pegou uma nave de abordagem e se dirigiu para o ponto de encontro que haviam acordado.

O céu em Titânia Primus brilhava mais do que ele imaginava, ligeiramente diferente do que via nas transmissões cósmicas, o planeta era quente demais para aguentar alguns tipos de vida sobre sua superfície. Não estranhamente os veículos que via eram lacrados. Ele aportou no prédio onde ela morava. Desceu da nave de abordagem e andou por corredores que eram iluminados por luzes indiretas, que mais pareciam iluminação auxiliar, no prédio havia um sistema de resfriamento que fazia seus ossos congelarem, aquilo era uma mudança de clima brusca em relação ao mundo externo.

Andrade viu milhares e milhares de pequenos contêineres que se empilhavam uns sobre os outros. Olhou para o comunicador portátil onde Naili sorria, e então seu sorriso desapareceu, dando lugar a uma face de dúvida e consternação. Ela perguntou por quê o rosto de Andrade estava tão triste e distante.

“Naili, infelizmente não poderei te encontrar. Meu comandante exige que toda a equipe se empenhe na manutenção do gerador, caso contrário poderia haver uma catástrofe. E infelizmente, após essa manutenção iremos embora imediatamente, pois houve um chamado de igual intensidade em outro planeta”.

O tenente Andrade subiu na nave de abordagem e partiu para Ganimedes.

Naili não entendeu o que havia acontecido e chorou muito por não ter visto seu querido Carlos Andrade naquele dia. Contudo quando ela voltava à encontra-lo de serviço, durante os anos que se seguiram, sempre conversavam animadamente. Não viveram um amor carnal, mas sempre mantiveram um amor fraterno, carinhoso e uma amizade que transcendia a ambos. Ela se casou e teve filhos e colocou o nome do mais velho de Carlos.

O tenente Andrade jamais contou a ela que quando ele aportou no planeta viu que eram uma sociedade lacrada, um grupo de pessoas que por gerações mantinham suas vidas dentro de uma realidade virtual comunitária. Tantas foram essas gerações que eles já não tinham noção de que estavam presos a máquinas. Para eles, aquilo que viviam era real. Durante o pouco tempo em que esteve em Titânia Primus, Carlos tocou o esquife onde estava o corpo físico de Naili e pela primeira vez na vida sentiu o que é silêncio.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Invisível - Um conto de Mago: o Despertar

Evandro andava aos tropeções pela rua acidentada, caminhava de maneira vacilante e quase perdia o frágil equilíbrio sempre que mudava a superfície onde pisava, fosse grama, asfalto, concreto ou terra. Seus pés doíam todas as vezes que tocavam o solo. Estavam rachados, feridos, praticamente em carne viva. O rastro de sangue poderia ser seguido por mais de dois quilômetros, contudo nenhum dos passantes parecia notar aquela trilha funesta, nem o homem da qual ela se originava.

As mãos de Evandro tremiam incontrolavelmente, descrevendo minúsculos círculos, os quais apenas uma pessoa muito atenta perceberia que eram círculos perfeitos. E então retornavam ao caos do descontrole.

Os olhos estavam marejados e carregavam uma dor nunca antes sentida por aquele homem, uma dor espessa, densa, que motivava, que maltratava e torturava, Evandro era apenas uma sombra do que um dia foi.

"Continuar" ele tentava falar com sua boca aberta, de onde brotava uma saliva grossa e amarelada. "Continuar" ele tinha certeza de que tentava dizer, entretanto nada era pronunciado, a não ser um tênue som gutural, que dava àquela patética criatura um ar abobalhado.

Evandro andava com seus pés feridos e descalços e ninguém o notava.

Não havia lucidez em sua mente e fragmentos de desorientação o impulsionavam em direção do abismo que nunca se revelava. A queda que às vezes almejava não vinha. Ela jamais se aproximava, mas Evandro era resoluto, ele chegaria à beira do precipício antes de se tornar completamente absorto de suas faculdades.

Mas era a dor sua maior motivadora. Uma dor aguda que subia por dentro de suas pernas, penetrava no interior de seus ossos, continuava incansavelmente por sua coluna, chocava-se com brutalidade contra a junção do pescoço e distribuía-se irrestrita pela mente do homem que a não mais de três dias foi um excelente músico, cuja técnica era reconhecida fora de seu território característico.

A cada dez passos, exatamente dez passos, um clarão de consciência o apavorava, mostrando quem ele foi antes de se entregar àquela canção sem esperanças.

E após uma infinidade de passos de dor e um punhado de pequenos pedaços de consciência, o imundo homem, que já tocou o coração de seu fiel público com suas músicas, finalmente alcançava o limite do abismo.

Seu olhar foi em direção ao chão, reforçando a aparência de dor. Cinco voltas em círculos com exatamente um metro de raio, foram dadas. E após tudo o que havia passado o passo final em direção à escuridão do abismo seria dado. Apenas mais um passo para encontrar a liberdade e as dádivas que lhe haviam sido prometidas, um único passo para se encontrar.

Foi então que a voz abissal se fez ouvir.

“Não dê esse último passo” dizia a voz, com seu tom profundo, com a convicção dos perfeitos.

“Por favor” vieram as palavras à sua mente, e tudo o que foi capaz de pronunciar foram vogais sem nexo. “Ele não me ouviu” Evandro pensou.

“Não haverá permissão para tua queda. Não te permito que entre na escuridão”.

“Por quê?”  a pergunta se formou quase nítida em sua cabeça iluminada por um momento de diminuição da dor.

“Porque ainda há, em tua terra, quem te perceba. E para entrar em mim, apenas os verdadeiramente ignorados tem o direito”. A voz do abismo era calma, porém imperiosa, preenchia cada lacuna no espaço ao redor, reverberava no íntimo e se fazia obedecer com total submissão.

“Não. Agora sou sozinho. Ninguém me percebe”. Se houvesse uma maneira do rosto de Evandro se tornar ainda mais sofrido, teria sido naquele momento, quando a dor o abandonou por mais um instante e ele sentiu que talvez lhe fosse negada a entrada na escuridão e a queda. Seus braços balançaram na direção das pessoas que estavam próximas a ele. “Veja, por favor. Veja. Ninguém me percebe. Fiz minha parte. Eu fiz minha parte!” certamente não houve palavras proferidas, apenas balbucios desconexos, enquanto a baba vertia à profusão de sua boca aberta, qual a feição de um demente.

“Você não está pronto” disse por fim o abismo, sem compaixão, sem piedade ou satisfação, apenas disse e se foi.

“Não! Volte! Eu fiz minha parte! Ninguém me percebe! Eu sou um ignorado!” Evandro caiu de joelhos, que ao se chocarem com o solo pedregoso foram feridos e então uma nova e diferente onda de dor trespassou seu corpo. E aquela dor se transformou em desespero quando uma senhora, com não mais de quarenta anos e razoavelmente bem vestida, se aproximou dele.

“Você está bem, rapaz?”

De joelhos no chão, a dor da caminhada torturante se desfez. Evandro então, com suas roupas limpas e seus sapatos de couro, levantou-se e com melancolia em sua voz respondeu à senhora “sim, mas um dia encontrarei o abismo novamente” e retornou à sua vida.

As Sombras do Lado Errado - Um conto de Lobisomem, os Destituídos

           A cidade encontra-se em silêncio quase absoluto, a madrugada está profunda e aos olhos dos seres humanos pouca coisa ocorre de notável. Só que na verdade o mundo está mergulhado em um caos selvagem, onde feras ancestrais caçam entre os muros de concreto e sob lâmpadas de mercúrio que emprestam um tom amarelado aos dentes dispostos a dilacerar suas vítimas. Os humanos não conseguem notar esse caos com seus sentidos simplórios, só que eu não estou limitado a apenas um punhado de informações, eu tenho toda uma ampla gama de sensações para me informar sobre as coisas que existem no mundo, eu sou um lobisomem.

            Um zumbido metálico chega aos meus ouvidos de forma tênue junto com um buquê de odores que vão de amônia, passando por lavanda e carmim e chegando a um toque distante de oxidação. O ruído mecânico não existe de verdade, ele é um eco surdo do que acontece entre duas realidades interligadas. Ele é a ressonância que vibra em harmonia com o pequeno bastão metálico que existe tanto no mundo da carne quanto no mundo dos espíritos. Esse som estranho é o que me indica onde está o coração do portal entre essas duas existências.

            Vou em direção ao ruído com todo o cuidado que posso ter. Eu farejo o ambiente ao meu redor em busca de outros cheiros que possam confirmar as minhas suspeitas. Não demora muito e os encontro. Eu estava certo. Seja lá o que tenha levado tanto o pai quanto o garoto, foi em direção ao lócus e os cheiros que eu havia sentido próximo da quadra de esportes não mentiriam, a coisa pertencia ao outro lado da realidade.

            Eu e minha alcatéia guardamos essa área há muito tempo, mas nunca soubemos da existência desse lugar até então, talvez estejamos cuidando de um pedaço de terra maior do que realmente conseguimos manter. Enquanto me aproximo, aguço ainda mais meu olfato e não percebo outros cheiros que mostrem problemas. Eu observo o espaço com meus olhos físicos e aos poucos procuro entender e entrar em ressonância com o meu lado espiritual, consigo enxergar através do dromo que separa os dois mundos. Não há nada lá. Isso é estranho, pensei que iria encontrar os guardiões desse locus.

            Então me concentro ainda mais, aproveito que meus olhos já estão em concordância com o outro lado do espectro do mundo e busco também entrar por completo na mesma conformidade metafísica. Eu sinto meu corpo de carne tornar-se etéreo, eu suponho que meu lado espiritual torne-se físico para acomodar minha nova realidade e como se mergulhasse em águas geladas e inexistentes, eu surjo por completo no mundo das sombras, o lugar onde minha raça chama de hisil. Ao emergir nessas Sombras os símbolos que demonstram quem eu sou brilham prateados como medalhas agraciadas por minha mãe, Amahan Iduth, a Lua.

            Não perco tempo em admirar minhas marcas espirituais e procuro me esconder o mais rápido possível. Não quero que a presa que caço descubra que estou próximo a ela, não antes do ataque.

            Paro mais uma vez e procuro novamente pelos odores exalados por minha presa. Não demora muito e os encontro, ela não se deu ao trabalho de se esconder, isso está parecendo fácil demais. Então continuo meu caminho através do reflexo do mundo. A selva espiritual deseja me devorar, eu sei disso. Aqui eu sou mais presa do que predador. Entretanto mesmo assim sou guiado por minhas obrigações e continuo indo de encontro ao meu alvo.

            Após vários metros dentro da Sombra escuto, de súbito, um grito grave e sofrido. Poucos instantes depois, um outro grito chega a mim, mas dessa vez é mais agudo, contudo o sofrimento é tão intenso quanto o primeiro. Certamente são o pai e o filho seqüestrados.

            Avanço mais e então paro por detrás de pequenas paredes de tijolos repletas de limo, a cena que eu vejo me é inquietante. Dentro da área formada pelas paredes, algo como se fosse uma casa em construção, um imenso monstro se inclina sobre os dois humanos que procuro. O sangue de ambos ensopa a terra abaixo deles. O espírito é quase branco fantasmagórico, grande, com braços longos e dedos finos, sua pele repuxada aparenta ser resistente. Algumas placas de couro reforçam a idéia de dureza. Há também uma enorme boca, repleta de dentes maciços como pedras, que permanece escancarada, assustadora, mas a coisa não se alimenta dos dois caídos, ele apenas os corta sistematicamente. Pequenos espíritos, fragmentos de sentimentos, se formam com a dor e o sofrimento daqueles dois. Eu não entendo, mas parece que o espírito maior está estudando a ambos.

            Antes de atacá-lo observo atentamente seus movimentos enquanto pacientemente tortura suas vítimas. Aquilo me deixa nervoso, é contra a natureza de meu povo torturar sua caça, está contido no juramento que fizemos à Mãe que nós devemos caçar sim, mas também devemos respeitar nossas presas. Eu até gostaria de estudar mais tempo o que esse monstro está fazendo, para tentar entender as razões alienígenas que o levaram a esse ponto, mas ver a cena me deixa nervoso, eu sinto os meus demônios interiores uivarem com fúria. Eles tentam me compelir a atacar. Contudo eu me controlo e observo, fascinado com o conhecimento. A conclusão que eu chego depois de alguns minutos é que o espírito estuda uma maneira de tornar-se Duguthim, ele pretende aprender como entrar em ressonância com um corpo humano para poder cavalgá-lo e controlá-lo no mundo da carne. Não posso mais permitir que essa blasfêmia prossiga.

            De um lance eu pulo já em transformação, meu corpo cresce, os músculos poderosos de minha raça se tornam ainda mais vigorosos e eu ataco com brutalidade, pegando o monstro de surpresa. De tão atento à sua pesquisa profana ele não se deu ao luxo de vigiar sua área e ignorou os guardiões do mundo. Acerto o que seria o pescoço da besta em um ataque calculado. A fera urra de dor. Minhas mordidas entram cada vez mais em sua carne fictícia, mas eu não consigo abate-la tão rapidamente quanto imaginei. O espírito me golpeia com força, revidando meu ataque com um poder sobre-humano. Sou arremessado contra uma das paredes, certamente quebro alguns de meus ossos, mas não será isso que me fará desistir. Ponho-me de pé prontamente e o ataco novamente, nos engalfinhamos como animais. Em uma luta frenética nos digladiamos com selvageria. Minha mandíbula se fecha com fúria sobre aquela pele grossa. Seus dedos finos rasgam minha carne, expondo vísceras, ossos, músculos, a dor é incômoda, mas minhas obrigações são mais importantes. Como inimigos ancestrais nós lutamos, e como lobisomem eu venço. À pancada final seu corpo efêmero explode em milhares de pedaços de sua carne espectral, aquilo me cega. Eu uivo forte e comemoro minha vitória! Mesmo assim eu sei que perdi muito sangue durante a batalha e as feridas que o espírito esculpiu em meu corpo demorarão a cicatrizar.

            Viro a cabeça para o lado e vejo o pai e o filho. Em seus olhos está estampado o pavor e a loucura de ver o mundo das sombras e de ver um Filho de Luna lutar com toda a sua glória. Não há nada que eu possa fazer por eles. Mordo seus pescoços e termino seus sofrimentos de maneira rápida.

            Eu concentro minhas forças para amenizar a dor que sinto e quando meus sentidos se tornam mais claros, percebo com angústia que antes do espírito branco outros cheiros e outros tipos de sangue estiveram naquele mesmo local em vários momentos anteriores. Suas impressões espirituais ficaram marcadas nos muros e no chão. Ao longe escuto os grunhidos ferozes de espíritos mais fortes que odeiam meu povo. Não posso enfrentá-los sozinho.

            Corro em direção ao locus, preciso voltar com urgência para o mundo físico e conversar com o alfa de minha alcatéia. Preciso informá-lo que o monstro estava estudando como se esconder de nós no mundo físico e que outros antes dele também o fizeram. Deve haver alguns espíritos escondidos no mundo da carne.

            É hora de caçar.

Entardecer - Um conto da Matrix

- Ok pessoal, eu sei que tudo isso que estamos vendo é apenas uma ilusão mas me digam uma coisa; esse pôr do sol é algo simuladamente maravilhoso!

- Ícarus às vezes acho que você é que não existe. Estamos em operações conjuntas a quatro anos e toda vez que você vê o pôr do sol na Matrix repete a mesma frase!

- Minha doce e querida Galatea, um homem tem o direito de sonhar. Que lugar seria melhor para isso do que dentro deste sonho coletivo?

- Tire essas mãos de cima de mim se ainda quiser tocar em algo quando sairmos daqui.

- Vocês dois aí atrás, nada de namoro agora. Estou dirigindo essa droga de carro a três horas sem parar e ainda faltam mais duas para chegarmos à casa dessa tal de Circe.

- Não reclame, Ixion. Você mesmo sempre diz que adora dirigir.

- Dirigir carros, não essa lata velha que Lock nos arranjou! Aliás, falando na figura, liguem para ele e vejam se existe uma rota mais rápida para chegarmos no vale de Circe.

- Sinto muito Ixion. Lock disse que não tem jeito. Este é o único caminho.

- Alguém aqui sabe quem é essa Circe?

- De acordo com Hermes, Circe já foi uma agente da Matrix que agora rouba informação das máquinas para repassar para os humanos.

- E como poderemos confiar em um programa?

- Hermes confia. Ele me disse que este programa já nos auxiliou várias vezes no passado.

- Hermes acredita em tudo o que Morpheus fala. É tão louco quanto ele!

- Apenas dirija Ixion.

......

- Pronto, aqui é o lugar, o vale de Circe. Lá embaixo, próximo daquele rio, está sua mansão. Um jardim muito bonito. Bem programado.

O carro é estacionado já dentro da imensa propriedade. O caminho entre o estacionamento e a mansão é grande e passa por jardins de flores amarelas e um labirinto de ciprestes. Os quatro operativos caminham apreensivos, hesitantes, como se previssem o desfecho da história. Ao passarem pelo labirinto eles vêem a imensa estátua de um minotauro esculpida em mármore. Todos tem a nítida impressão de que estão sendo observados por aquela criatura. Mas tudo não passa de paranóia coletiva. Após alguns minutos de caminhada, finalmente eles chegam às portas da fenomenal mansão.

- Por que estes programas vivem sempre em casas tão bonitas?

Neste momento, um homem aparentando uns trinta anos de idade abre a porta.

- Ah! Vejo que gostaram da fachada. Nós já estávamos esperando-os a algum tempo. Vocês estão atrasados - Ele caminha na direção dos operativos parando em frente a Ìcarus e apertando sua mão com um cumprimento firme. Galatea olha para aquele homem e fica maravilhada com sua beleza física.

- Pensei que Circe fosse uma mulher.

- E ela é linda senhorita. Circe os aguarda dentro da mansão. Desculpem-me pela minha falta de educação; me chamo Hélios e estou aqui para auxiliá-los da melhor forma possível.

Todos adentram a magnífica residência.

- Sigam-me. Circe já estava impaciente com a demora.

Após atravessarem vários corredores e descerem por mais de quatro andares, eles chegam a uma sala de paredes espelhadas. No centro desta sala encontra-se uma mesa com um terminal de vídeo.

- Vocês estão muito atrasados. Boa parte do que seria dito já foi perdido e não pode mais ser utilizado. Levem estas informações para Hermes e digam a ele que o Escolhido corre perigo. Peçam para que Morpheus seja avisado. Uma grande mudança está prestes a ser feita na Matrix. Minha existência neste ambiente é incerta. Safras de humanos correm sério perigo. Espero que não haja mais atrasos dessa vez. Vão e cumpram com sua missão.

- Quem falou isso?

- Circe é um programa que não apresenta um corpo físico. Ás vezes ela se manifesta neste terminal. Outra vezes se manifesta através da própria estrutura desta casa.

- Levem este disco para Hermes. Não percam mais tempo! Isso é algo que nenhum de vocês pode se dar ao luxo de perder agora.

......

- Lock qual a saída mais rápida daqui?...Certo... Entendido. Lock disse que a saída mais rápida não é necessariamente a mais segura.

- E qual é a novidade nisso?

- Ixion vamos seguir pela estrada 37 até chegarmos na periferia. Existe uma antiga conexão próxima a um supermercado naquelas redondezas. Vamos torcer para que os agentes não nos encontrem antes de chegarmos lá.

......

- Droga, trinta minutos nessa estrada e ainda nada!! Odeio esse carro! Lock maldito, da próxima vez quero um carro de verdade!

- Ixion cuidado!

- Meu Deus! Atingiram Danae! Fuja! Fuja!

- Danae reponda. Responda!

- Estamos perdidos! Lock? O quê? Ixion vire à direita rápido!

- Passa por cima. Atropela! Deus... Conseguimos? Danae...

- Ali, ali é o lugar. Rápido!

- Droga, essas escadas estão podres. Cuidado onde pisam.

- Estou ouvindo o telefone lá em cima.

- Tiros! Agentes novamente! Corram!

- Vai primeiro Galatea.

- Agora você Ixion.

- Meu Deus! Ele não vai conseguir. Rápido Lock faça a conexão!

- Estou tentando! Eu realmente estou tentando!

- Os agentes estão próximos...Vão pegá-lo!

- NÃO!

- Como? Os agentes estão parados! Como se fossem feitos de pedra!

- Como isso aconteceu? Que código é esse na tela?

- Não sei, mas este mesmo código apareceu quando vocês estavam no vale de...

- Circe!

- Pronto Ícarus. Vamos levar essas informações para Hermes.

<Desconectado>

Dúvidas - Um conto da Matrix

O que ninguém nunca me explicou de verdade é a razão daquela sensação de morte que me toma toda vez que me conecto. É um instante apenas. Um instante no qual sei que eu morri em um mundo, para nascer em outro. Mas a parte que sempre me deixa revoltado é que eu nasci filho de um aparelho telefônico. Pois essa é a nossa ligação com a vida. Seria essa linha a minha alma?


- Pronto para conectar, Leack?

- O quê? Ah, sim, estou pronto. Nasci conectado. - lá vem a minha morte, meu instante de morte.

Nunca achei palavras para definir isso e é por essa razão que acredito que morro realmente. Mas agora não é hora de ficar divagando em bobagens, tenho uma missão a cumprir. E é como sempre diz o Script, meu operador, “A guerra estar perdida ou não depende do próximo acesso”. Foi com ele que consegui algumas dessas idéias sobre vida e morte e sobre a razão de nossas existências.

Meu alvo é um prédio governamental bastante importante para a cidade. Devo entrar e hackear algumas informações vitais sobre indivíduos classificados como “perigosos para a sociedade” (possíveis desplugados). O problema todo é que tivemos de ser inseridos longe do centro, para evitar a monitoração e rastreamento da Matrix na região.

Comigo estão Fobos e IO. Eles farão o trabalho de segurança. Ultimamente estou me sentindo importante. Esse mundo é muito estranho. Estamos em uma guerra que não temos a mínima idéia de quando ou como começou.

Travamos batalhas no estilo de guerrilha, onde nós (os revolucionários), lutamos no próprio terreno do inimigo. Onde cada homem, mulher ou criança é uma ameaça em potencial.

Chegamos ao nosso alvo. Odeio isso, tudo está calmo demais. Fobos e IO neutralizam os 3 guardas do complexo e eu me sento em frente ao terminal de acesso. Começo meu trabalho. Droga, os códigos são bem mais difíceis do que havíamos pensado! Vai levar mais tempo do que o previsto. Mas fazer o quê? Agora que estamos aqui só nos resta terminar o serviço. Demora mais de 30 minutos, mas consigo chegar aos arquivos que estavamos procurando.

Tudo que preciso fazer agora é copiá-los. O telefone celular toca. É Script, o operador.

- Script, o que foi?

- Agentes!! Saiam daí o mais rápido que puderem!

Não quero sair e deixar o trabalho quase finalizado. Eu hesito um momento, apenas para terminar de copiar os arquivos. Pego o disco e, ao passar pela porta, vejo Fobos e IO caídos. Dois agentes me olham de imediato.

- Não adianta correr Sr. Claremont. As conexões foram cortadas.

Droga, não sei o que fazer! Fico ali parado, por um momento, com o disco na mão. O celular ainda estava ligado e ouço Script gritar - “Eu te ajudo a sair daí! Agora dê meia volta e corra!”. - Foi o que eu fiz, corri o mais rápido que podia. Saltei pela janela e cai sobre um carro estacionado. Lembro-me de que quando garoto sonhava com um carro desses. Ouço tiros atrás de mim e sinto passarem muito perto. Muito mais perto do que eu gostaria.

As motos nas quais viemos ainda estão no mesmo lugar. Rapidamente pego uma delas e acelero em disparada.

Script me indica uma saída, um telefone público nos fundos de um bar na beira da estrada. Acelero a moto ao máximo que posso. Ainda escuto tiros e procuro desviar, na verdade apenas dificulto um pouco mais o trabalho dos agentes.

Nem dou tempo do veículo parar, salto da forma mais segura possível e pouso com perfeição. É, parece que estou ficando bom nisso. Ouço o telefone tocar e corro em sua direção. Passo por um garoto com um saco de balas (Será que existe um deus para as crianças cultivadas?). Corro tanto que meus pulmões parecem explodir.

Pouco antes de tirar o telefone do gancho eu escuto mais um tiro. Vem da posição onde estava o garoto, agora ele é um Agente. Pronto, me pegou.

Sinto o peito queimar com o projétil ainda quente em meu interior. Agora eu vou ver se estava certo.

Sempre acreditei que a alma vem da consciência do que realmente somos, por isso nunca tive pudores em neutralizar os cultivados. Agora verei se existe um deus realmente...

Esperança

Por mais de cem anos aquelas criaturas ficaram ocultas do mundo, na esperança de que um dia fossem esquecidas.
Desejo me esquecer e desejo ser esquecido para sempre, como um homem invisível que nunca soube as formas de seu rosto, pois jamais olhou-se no espelho.
Às vezes questiono as razões de essa dor ser tão intensa e sempre recebo as mesmas respostas, que gostaria que fossem mentiras. O fato é que eu busco as lâminas que me ferem. Não que eu seja masoquista ou que goste de sofrer, mas apenas que, infelizmente, sempre tive esperanças e são essas esperançasque servem de pagamento para meus dias e noites inquietos, sentindo-me cada vez menor.

É lugar comum, eu sei, mas gostaria que meu coração fosse arrancado de meu peito e dilascerado, e que em seu lugar houvesse uma pedra negra, fria e dura, sem esperanças.
A esperança é a mãe da dor.