quarta-feira, 16 de maio de 2012

Atormentado - Um conto do Mundo das Trevas

O canto ritmado na língua hebraica afastava o frio sobrenatural daquele junho seco. Todas as treze pessoas que formavam o círculo vestiam túnicas de um vermelho intenso, algo que se tornava espectralmente chamativo à luz das cento e trinta e nove velas que iluminavam aquele grande quarto, no segundo andar do belo casarão.

O bem cuidado lote de terra ficava em um dos pontos mais altos daquele lugar, o que proporcionava uma vista sem igual de praticamente toda a região, mas os cultistas, seguidores da cabala negra, denominados “O Gosto do Lírio de Baphomet”, que nesse momento entoavam o cântico cadenciado de evocação de uma das sombras de Nahemoth, não estavam preocupados com a bela vista que aquela chácara oferecia, e mesmo que estivessem dispostos a olhar a paisagem não poderiam, pois a decoração funesta que preenchia todo o quarto também havia se fixado às janelas e cortinas, grossas e pesadas.

Para a evocação do ritual foram afixadas línguas humanas por todo o cômodo, que se prendiam às paredes com pregos de ferro, velhos, já enferrujados, feitos por mãos diabólicas, mãos que jamais tocaram este mundo.

Um forte cheiro de sangue e incenso penetrava nas narinas dos cultistas e isso os entorpecia, transpondo seus sentidos para um outro mundo, um mundo de sombras, alucinações, criaturas não-nascidas e que jamais morreriam.

Suas vozes absortas em suas próprias essências atravessavam as barreiras que separam os mundos, formando um túnel etéreo por onde a voz de sua líder, Demetra Kandake, ali conhecida como Sophia Maior, pudesse percorrer o infinito e encontrar uma única entidade dentro daquele mar caótico e primordial, e como tiros que iluminam a escuridão astral, a voz de Sophia Maior tocou como um soco a existência de Nahemoth, que se virou e observou a passagem etérea.

Em uma das pontas desse túnel inexistente estava Nahemoth, um dos anjos negros e na outra ponta, desacordado, ferido, indefeso, estava Paulo Marley, que seria entregue em sacrifício para que sua alma alimentasse de mortalidade uma sombra da entidade, uma parte ínfima, do todo que é Nahemoth, e essa sombra permaneça próxima do mundo físico, no intento de que as ambições do Gosto do Lírio de Baphomet e de sua sacerdotisa, Sophia Maior, fossem alcançadas. Contudo o grande erro dos mortais é confiar plenamente em suas capacidades de compreender entidades e mundos além de seu escopo de existência.

A canção funesta, composta por frases proibidas e palavras dignas de ojeriza, ganhou mais corpo, e num crescendo maldito chegou a seu ápice quando a faca, extremamente bem decorada com detalhes mórbidos e nomes blásfemos e de fio impecável, percorreu o espaço, guiada pelas mãos unidas de Sophia Maior, penetrando profundamente no peito nu da oferenda ao anjo negro.

Paulo Marley sentiu a lâmina fria em sua carne e tentou em vão, apenas por um instante, muito mais por ato reflexo do que por consciência do que fazia, se desvencilhar de sua posição. Não conseguiu e no momento seguinte imaginou sua alma deixando seu corpo e sua vida se esvaindo.

Antes de sua morte final teve consciência da presença negra de Nahemoth, de uma idéia de fragmento da sombra, alojar-se em seu íntimo.

E então morreu.

Na mesma noite, os cultistas levaram o corpo da vítima do sacrifício para um lugar ermo e lá o enterraram, deixaram seu cadáver oculto, onde jamais pudesse ser encontrado, perdido para sempre, sem identidade, sem paradeiro para seus conhecidos.

Três noites depois do ritual, a terra do sepultamento profano se revolveu e revelou um ser atormentado, com uma partícula demoníaca de existência extradimensional a amaldiçoa-la com vida, uma vida morta, sem calor, sem amor, apenas a dor de estar morto. A fome que Paulo sentiu era profunda e excruciante e ele sabia onde deveria se alimentar.

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