sexta-feira, 11 de maio de 2012

Invisível - Um conto de Mago: o Despertar

Evandro andava aos tropeções pela rua acidentada, caminhava de maneira vacilante e quase perdia o frágil equilíbrio sempre que mudava a superfície onde pisava, fosse grama, asfalto, concreto ou terra. Seus pés doíam todas as vezes que tocavam o solo. Estavam rachados, feridos, praticamente em carne viva. O rastro de sangue poderia ser seguido por mais de dois quilômetros, contudo nenhum dos passantes parecia notar aquela trilha funesta, nem o homem da qual ela se originava.

As mãos de Evandro tremiam incontrolavelmente, descrevendo minúsculos círculos, os quais apenas uma pessoa muito atenta perceberia que eram círculos perfeitos. E então retornavam ao caos do descontrole.

Os olhos estavam marejados e carregavam uma dor nunca antes sentida por aquele homem, uma dor espessa, densa, que motivava, que maltratava e torturava, Evandro era apenas uma sombra do que um dia foi.

"Continuar" ele tentava falar com sua boca aberta, de onde brotava uma saliva grossa e amarelada. "Continuar" ele tinha certeza de que tentava dizer, entretanto nada era pronunciado, a não ser um tênue som gutural, que dava àquela patética criatura um ar abobalhado.

Evandro andava com seus pés feridos e descalços e ninguém o notava.

Não havia lucidez em sua mente e fragmentos de desorientação o impulsionavam em direção do abismo que nunca se revelava. A queda que às vezes almejava não vinha. Ela jamais se aproximava, mas Evandro era resoluto, ele chegaria à beira do precipício antes de se tornar completamente absorto de suas faculdades.

Mas era a dor sua maior motivadora. Uma dor aguda que subia por dentro de suas pernas, penetrava no interior de seus ossos, continuava incansavelmente por sua coluna, chocava-se com brutalidade contra a junção do pescoço e distribuía-se irrestrita pela mente do homem que a não mais de três dias foi um excelente músico, cuja técnica era reconhecida fora de seu território característico.

A cada dez passos, exatamente dez passos, um clarão de consciência o apavorava, mostrando quem ele foi antes de se entregar àquela canção sem esperanças.

E após uma infinidade de passos de dor e um punhado de pequenos pedaços de consciência, o imundo homem, que já tocou o coração de seu fiel público com suas músicas, finalmente alcançava o limite do abismo.

Seu olhar foi em direção ao chão, reforçando a aparência de dor. Cinco voltas em círculos com exatamente um metro de raio, foram dadas. E após tudo o que havia passado o passo final em direção à escuridão do abismo seria dado. Apenas mais um passo para encontrar a liberdade e as dádivas que lhe haviam sido prometidas, um único passo para se encontrar.

Foi então que a voz abissal se fez ouvir.

“Não dê esse último passo” dizia a voz, com seu tom profundo, com a convicção dos perfeitos.

“Por favor” vieram as palavras à sua mente, e tudo o que foi capaz de pronunciar foram vogais sem nexo. “Ele não me ouviu” Evandro pensou.

“Não haverá permissão para tua queda. Não te permito que entre na escuridão”.

“Por quê?”  a pergunta se formou quase nítida em sua cabeça iluminada por um momento de diminuição da dor.

“Porque ainda há, em tua terra, quem te perceba. E para entrar em mim, apenas os verdadeiramente ignorados tem o direito”. A voz do abismo era calma, porém imperiosa, preenchia cada lacuna no espaço ao redor, reverberava no íntimo e se fazia obedecer com total submissão.

“Não. Agora sou sozinho. Ninguém me percebe”. Se houvesse uma maneira do rosto de Evandro se tornar ainda mais sofrido, teria sido naquele momento, quando a dor o abandonou por mais um instante e ele sentiu que talvez lhe fosse negada a entrada na escuridão e a queda. Seus braços balançaram na direção das pessoas que estavam próximas a ele. “Veja, por favor. Veja. Ninguém me percebe. Fiz minha parte. Eu fiz minha parte!” certamente não houve palavras proferidas, apenas balbucios desconexos, enquanto a baba vertia à profusão de sua boca aberta, qual a feição de um demente.

“Você não está pronto” disse por fim o abismo, sem compaixão, sem piedade ou satisfação, apenas disse e se foi.

“Não! Volte! Eu fiz minha parte! Ninguém me percebe! Eu sou um ignorado!” Evandro caiu de joelhos, que ao se chocarem com o solo pedregoso foram feridos e então uma nova e diferente onda de dor trespassou seu corpo. E aquela dor se transformou em desespero quando uma senhora, com não mais de quarenta anos e razoavelmente bem vestida, se aproximou dele.

“Você está bem, rapaz?”

De joelhos no chão, a dor da caminhada torturante se desfez. Evandro então, com suas roupas limpas e seus sapatos de couro, levantou-se e com melancolia em sua voz respondeu à senhora “sim, mas um dia encontrarei o abismo novamente” e retornou à sua vida.

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