sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O Filho de Anúbis - um conto de Scion (Hero)

O cheiro forte do incenso queimando trazia à mente imagens de deuses antigos, de sangue e fogo, de vida e morte, luz e trevas, de paz e de violência.

O odor inebriante era intenso, mas não tão intensa quanto a movimentação frenética que tomava conta dos salões subterrâneos da antiga fábrica química Burgoyne Burbidges em East Ham em Londres.

Tudo havia começado como um encontro da sociedade secreta da loja egípcia dos filhos do Nilo. Eles estavam reunidos para entregar a Muhamed al’Abbas, um emissário especial, o Livro dos Portais, uma relíquia sagrada de tempos imemoriais. Os rituais transcorriam conforme o cronograma, seguindo os desígnios dos deuses, entretanto o Destino transforma os heróis em peões em seu tabuleiro de jogos.

Dois minotauros, enviados por Gaedos, um dos generais dos inimigos, haviam aparecido de surpresa no templo oculto, onde os adoradores de Anúbis faziam seu ritual.

Doze tiros foram disparados por Muhamed em direção de Tisias, uma das enormes feras, que feria os seguidores desesperados. A munição consagrada ao deus da morte fez sua obrigação e derrubou a criatura de forma definitiva. Vários dos crentes nos antigos deuses encontravam-se feridos no chão, com suas vozes de agonia. al’Abbas gritou para que os seguidores fossem em direção aos túneis inferiores, e que ele também cuidaria do monstro restante.

Ele sabia que sua munição divina havia acabado.

Quando o último crente entrou no túnel, al’Abbas ordenou à porta que se fortalecesse, isso impediria aos inimigos de avançarem, o que protegeria os inocentes além de seus umbrais. Ela obedeceu.

Enquanto empregava os poderes de seu sangue, foi acertado em cheio. O chifre envenenado de Kakios, um dos monstros invasores, entrou fundo, atravessando costelas e perfurando seu pulmão esquerdo, por pouco não atingindo seu coração. O impacto o arremessou pelo ar, fazendo-o atravessar dois grandes arcos e então aterrizou com tanta violência que o barulho do partir de seus ossos ecoou pelo ambiente. O gosto ferroso de sangue preenchia sua boca e sua respiração estava dura, dolorida. A queda fez com que batesse a cabeça em um dos pilares próximos da porta que levava aos túneis inferiores, o outro minotauro, Tisios, estava lá, morto ao seu lado.

Kakios bufou alto e os olhos vermelhos da besta tornaram-se fogo vivo. Pôs-se a correr em direção de al’Abbas, com os chifres prontos para mais uma investida, o derradeiro ataque. Não havia muito mais o que fazer, com uma olhada rápida ao redor observou cada pequeno detalhe, com as poucas forças que ainda lhe restava consagrou o arco à sua frente ao seu nome e ao nome de seu pai, e obrigou-os a impedir a passagem do minotauro.

Kakios quase quebrou o pescoço quando atingiu a barreira invisível, construída com a vontade do filho de Anúbis. Ficou levemente abalado, contudo não desistiu de seu intento. voltou a atacar com ainda mais ferocidade. A cada nova investida a proteção suportava, mas era perceptível que ela não duraria muito tempo.

al’Abbas então pediu à morte um favor e tocou o cadaver caído de Tisias, fazendo seu corpanzil cravejado de balas se mover à sua vontade.

Quase no mesmo instante a barreira protetiva esfacelou-se em milhares de fragmentos. O minotauro raspou os cascos no chão e faíscas queimaram no ar. Então atacou com brutalidade, e quase alcançou êxito, mas sua sanha assassina o cegou e ele não notou que os chifres de seu antigo aliado, agora um desmorto ao comando de al’Abbas, havia entrado fundo em sua carne, rasgando-o por dentro. Debateu-se, espancou o cadáver ambulante, mutilou-o, mas foi tudo em vão. Faleceu embebido em seu próprio sangue.

O odor do incenso ainda era intenso e começava a fazer mais sentido agora, que tudo havia se acalmado. Não havia mais alvoroço e al’Abbas estava morrendo, ele estava próximo dos portões metafóricos que levavam aos reinos de seu pai no submundo. Deixou sua cabeça pender para o lado, tentando enganar a dor enorme que sentia, quase iniciou as orações pelo seu passamento, mas ouviu passos apressados vindos da entrada principal do templo subterrâneo, eram sons que sua audição legendária não confundiriam. Sorriu um sorriso entredentes e logo em seguida tossiu forte, com dores e então sentiu um alívio divino quando Hilda Falkensburg, a filha de Freya, da raça dos Vanir, clamou sua herança sobre a saúde e rezou à sua mãe para salvar a vida de al’Abbas. Ao seu lado também estava o rapper T.K. filho de Legba, dos Loa.

- Chegamos bem a tempo de te salvar, mais uma vez - a frase era dita por aquele homem magro, jovem, negro, com um sorriso largo, branco como marfim.

- Eu matei dois minotauros enviados por Gaedos, salvei vinte seguidores dos Pesedjet e vocês me salvaram? - os ferimentos já não mais doíam, o sangue estancou, a cor de vitalidade retornou ao rosto do belo e jovem filho de Anúbis. - De qualquer maneira, obrigado por virem, apesar da bagunça aqui, consegui pegar o que vim buscar. Agora preciso levar isto para o Egito. Volto a encontrá-los em dez dias.


O terreno pedregoso e escaldante que se encontrava abaixo passava rápido. Aquilo incitava lembranças ancestrais contidas em seu sangue. Muhamed al’Abbas al’Fadhal sentava-se em sua extremamente confortável poltrona em um avião particular Airbus A380, com bandeira privativa de sua empresa, a al’Abbas Petroleum, com braços na Arábia Saudita, Iraque, Kuait e Emirados Árabes.

Seu rosto esguio, de pele bronzeada, com um nariz insinuante era favorecido por olhos expressivos de um negro profundo, olhos de um verdadeiro predador.

Uma das muitas aeromoças lhe trouxe uma bebida refrescante. al’Abbas deixou-se quase sorrir ao observar as curvas da mulher que utilizava um uniforme de trabalho um tanto justo, que realçava sua beleza. Ela se afastou com uma mesura e movimentos sinuosos. Uma bela visão, pensou ele.

A bebida foi providencial, fez seu corpo relaxar.

Ele então olha para a mesa à frente e pega, pela centésima vez, o envelope em pele de carneiro, costurado e dele retira um rolo de papiro. O conteúdo do texto se faz presente em suas memórias novamente. Os hieróglifos cali contidos informavam um local, uma data, um nome e um mistério. O significado daqueles símbolos lhe era claro, familiar e preciso, mesmo sem jamais tê-los estudado. Ajeitou-se na poltrona e adormeceu. Despertou com a voz da aeromoça, que encontrava-se ao seu lado.

- Senhor, chegamos a Sharm el-Sheikh. Sua limousine já foi desembarcada do avião e o aguarda conforme solicitado.

Quando as pessoas pensam em Egito não costumam visualizar climas amenos, uma cidade linda, banhada pelo mar vermelho.

A limousine levou al’Abbas até um enorme hotel a oeste da cidade de Sharm. Um resort opulento, com vista para o mar vermelho, palmeiras, praia, um vento forte que refrescava, um lugar que acrescia à figura bem vestida de al’Abbas.

Não havia outros hospedes, todo o lugar havia sido reservado apenas para ele e sua comitiva.

Ele andou até a praia, retirou os sapatos e os entregou a um dos serviçais. O som predominante do lugar era o barulho do mar, que enchia seus olhos à sua frente, o som do vento em suas orelhas e uma música distante, de vozes esquecidas no tempo.

Caminhou com os pés descalços sobre a areia molhada até uma cadeira de praia feita de madeira. Lá encontrava-se um homem negro, de porte também esguio como al’Abbas, com olhos tão negros quanto o submundo e uma graça tão precisa que provavelmente saberia pesar a alma de um homem.

O homem apontou para uma cadeira ao lado da sua, onde al’Abbas se sentou e olhou para o mar.

- Trouxe o que me pediu, Inpu. Não foi fácil. Fomos atacados pelo inimigo, quase vim ao seu encontro mais cedo, pelo caminho sombrio.

- Mas você venceu, meu filho. Agora aproveite a brisa e contemple o infinito. Ainda há muito a ser feito e no mundo superior os titãs batem às nossas portas, tentanto escancará-las. Amanhã você voltará ao encontro de seus aliados e espero que em nosso próximo encontro me traga informações sobre quem Gaedos deseja despertar em Londres. Meu sangue corre em suas veias e tenho muito orgulho disso.

O sol se pôs, a escuridão tomou conta do mar, Anúbis voltou para sua morada celestial enquanto seu filho ainda apreciava as areias da praia deserta, sabendo que seu destino mais uma vez lhe afastaria de seu amado Egito e o levaria o levaria à ilha da Inglaterra. Ele sabia que esse era o seu destino, o destino dos heróis.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O Monstro Familiar - Um micro conto do Mundo das Trevas

Era sempre o mesmo sorriso tímido e o corriqueiro cumprimento bem mensurado quando encontrava com os vizinhos, ou os colegas de trabalho, ou algum conhecido. E foi com passos calmos e a respiração controlada que ele saudou aos que encontrava quando chegou à repartição onde trabalhava.

Sentou-se, ligou seu computador e pegou a xícara de café. Observou a superfície do líquido escuro e quente. A escassa espuma que ali existia formava, em sua mente, padrões que traziam suas experiências àquele momento e por um instante seus pensamentos foram além das paredes do prédio.

Ele lembrou-se do frio da noite, do suor sobre seu corpo e da excitação que sentira. Tudo já havia sido feito. Não houve problemas, nem sequer um pequeno transtorno. Tudo foi fácil, deliciosamente fácil. Como em todas as outras vezes, ele apenas agiu. Tantas foram as vítimas que o prazer havia se tornado mecânico e cada vez mais intenso. Ele não pensou nas consequências de seus atos, apenas seguiu com seu plano, parcamente elaborado, e foi saciar sua doença.

O café findou-se e o sabor amargo da bebida contrastava com o gosto doce da noite anterior. Ele observou ao seu redor, com calma, enquanto respondia aos e-mails do serviço. Um funcionário padrão e eficiente.

À mesa de trabalho, em frente de vários papéis e um monitor com planilhas de cálculos abertas, ele respirou fundo e por um momento olhou para suas unhas, irregulares, quebradas em pequenos pontos. Apesar de tê-las limpado como de costume, ainda "via", com os olhos da lembrança, a terra vermelha dentro delas. Em sua mente visualizou suas mãos cavando a terra seca, cavando fundo e forte, tanto que até feriu seus dedos. O corpo de sua última vítima ainda estava ali, perto, com o rosto virado para ele e com seus olhos mortos, vazios, a observá-lo, a saliva aflorou em sua boca mais uma vez, em profusão.

Os números e os cálculos tomaram seu tempo e mais um dia se passou. Seus colegas o admiravam por sua competência no ambiente produtivo e por sua simpatia - "Não se esqueça do churrasco no sábado, será lá em casa" um amigo dizia.

O sorriso amistoso escondia uma maldade latente, que ninguém jamais via. Ele fingia bem, escondia bem, era mais convincente do  que um ator profissional.

Vivia tanto aquela farsa que até as vezes quase acreditava nela. Quem olhasse em seus olhos veria um homem assustado, tímido, ingênuo até, mas sua boca salivava sempre que via uma vítima em potencial. Quanto mais inocente a presa, melhor. Aquele único ponto de descontrole era o que o denunciava.

Seu prazer sórdido, se sabido pelos que com ele andavam, os enojaria ao ponto de perseguirem-no, espancarem-no e esquartejarem-no em praça pública, horrorizados, como uma turba ensandecida, enquanto gritariam palavras como: "monstro", "abominação" e "aberração". E dormiriam preocupados por talvez existirem outros como ele, que também frequentavam suas casas e estavam perto de seus filhos, de suas esposas, maridos, mães e pais.

Contudo ele ainda estava vivo, sorridente, amigo, confiável, perigoso e acima de tudo incógnito.