quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O Monstro Familiar - Um micro conto do Mundo das Trevas

Era sempre o mesmo sorriso tímido e o corriqueiro cumprimento bem mensurado quando encontrava com os vizinhos, ou os colegas de trabalho, ou algum conhecido. E foi com passos calmos e a respiração controlada que ele saudou aos que encontrava quando chegou à repartição onde trabalhava.

Sentou-se, ligou seu computador e pegou a xícara de café. Observou a superfície do líquido escuro e quente. A escassa espuma que ali existia formava, em sua mente, padrões que traziam suas experiências àquele momento e por um instante seus pensamentos foram além das paredes do prédio.

Ele lembrou-se do frio da noite, do suor sobre seu corpo e da excitação que sentira. Tudo já havia sido feito. Não houve problemas, nem sequer um pequeno transtorno. Tudo foi fácil, deliciosamente fácil. Como em todas as outras vezes, ele apenas agiu. Tantas foram as vítimas que o prazer havia se tornado mecânico e cada vez mais intenso. Ele não pensou nas consequências de seus atos, apenas seguiu com seu plano, parcamente elaborado, e foi saciar sua doença.

O café findou-se e o sabor amargo da bebida contrastava com o gosto doce da noite anterior. Ele observou ao seu redor, com calma, enquanto respondia aos e-mails do serviço. Um funcionário padrão e eficiente.

À mesa de trabalho, em frente de vários papéis e um monitor com planilhas de cálculos abertas, ele respirou fundo e por um momento olhou para suas unhas, irregulares, quebradas em pequenos pontos. Apesar de tê-las limpado como de costume, ainda "via", com os olhos da lembrança, a terra vermelha dentro delas. Em sua mente visualizou suas mãos cavando a terra seca, cavando fundo e forte, tanto que até feriu seus dedos. O corpo de sua última vítima ainda estava ali, perto, com o rosto virado para ele e com seus olhos mortos, vazios, a observá-lo, a saliva aflorou em sua boca mais uma vez, em profusão.

Os números e os cálculos tomaram seu tempo e mais um dia se passou. Seus colegas o admiravam por sua competência no ambiente produtivo e por sua simpatia - "Não se esqueça do churrasco no sábado, será lá em casa" um amigo dizia.

O sorriso amistoso escondia uma maldade latente, que ninguém jamais via. Ele fingia bem, escondia bem, era mais convincente do  que um ator profissional.

Vivia tanto aquela farsa que até as vezes quase acreditava nela. Quem olhasse em seus olhos veria um homem assustado, tímido, ingênuo até, mas sua boca salivava sempre que via uma vítima em potencial. Quanto mais inocente a presa, melhor. Aquele único ponto de descontrole era o que o denunciava.

Seu prazer sórdido, se sabido pelos que com ele andavam, os enojaria ao ponto de perseguirem-no, espancarem-no e esquartejarem-no em praça pública, horrorizados, como uma turba ensandecida, enquanto gritariam palavras como: "monstro", "abominação" e "aberração". E dormiriam preocupados por talvez existirem outros como ele, que também frequentavam suas casas e estavam perto de seus filhos, de suas esposas, maridos, mães e pais.

Contudo ele ainda estava vivo, sorridente, amigo, confiável, perigoso e acima de tudo incógnito.

4 comentários:

  1. Duas ironias me chamam a atenção, i) a de que o personagem pode bem ser qualquer conhecido a nossa volta, e ii) a de que este, uma vez descoberto, desperta sentimentos próximos nos muitos que certamente o apedrejariam e esquartejariam no anonimato da multidão. Gostei! ;)

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  2. Começando o ano com um ótimo conto!

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