terça-feira, 15 de maio de 2012

Sons no Cosmo - Um conto de ficção científica

Nunca havia silêncio no espaço cósmico. Podia haver paz, tranquilidade, calma e a mais completa e extrema solidão, mas silêncio jamais havia. Naquele vazio sem fim, margeando um sistema estelar a quase mil anos luz de distância de sua casa de verdade, o tenente Carlos Andrade pensava nos sons que ouvia - o zumbido do reator da nave, constante, melancólico, confundindo-se com os sons do sistema eletromecânico, os sons dos filtros de ar e água, do péssimo sintetizador de alimento, que ninguém chamava de sintetizador de comida, pois comida tem cheiro, sabor e textura agradável, e não aquela pasta insossa e desagradável, a razão do porquê mais de 90% do que era consumido na nave era trazido à bordo já semipreparado, e apenas quando acabava a comida é que os tripulantes se viravam para o que eles apelidavam de lixo. A maior parte dos cosmonautas entrava em depressão ao final de viagens longas ou com excesso de tripulação por causa do que teriam de comer ao final da jornada. Mesmo quando estavam fora da nave, nos trajes de passeio em gravidade zero, havia o barulho da respiração e das fortes batida do coração, mas silêncio mesmo nunca existia. Andrade postulava que o barulho era algo inerente à vida, aonde o ser humano ia na imensidão negra do cosmos, o som estaria sempre lá, como companheiro.

O Ten. Andrade era engenheiro eletromecânico da espaçonave de apoio científico e pesquisas Ganimedes, e naquele momento ele estava em um bom período de folga, lendo alguns textos técnicos, revendo as plantas e projetos das principais partes da nave que era responsável e ouvindo os canais de comunicação quando, entre uma página do guia Hoffen-Kaneda de refrigeração  de motores e um capítulo de Uma Breve História do Mundo, ele quase despercebidamente ouviu um chamado bem diferente dos corriqueiros pedidos de ajuda e manutenção nas transmissões de outras naves com problemas. O sinal estava fraco e cheio de interferências, apesar dos mostradores  indicarem uma portadora bem feita e razoavelmente próxima, menos de cinquenta anos luz. Não se via nitidamente a imagem do transmissor, apenas um borrão repleto de deformidades e quadrados pretos e um som preenchido com estática.

“Olá, tem alguém me ouvindo? Olá?”

A voz era feminina, dava para perceber mesmo com toda interferência.

“Se houver alguém me ouvindo, responda”.

Andrade afastou os documentos que lia e se fez a requisição para ampliar a qualidade da comunicação. “Aqui é a nave de apoio Gamimedes, você está em um canal de comunicação oficial, mude para os canais públicos imediatamente”.

“Finalmente! Alguém me ouviu!”

E então imperou a estática. Andrade ignorou a súbita perda da comunicação e mesmo com a curiosidade que se instaurou, ele colocou o modo de transmissão em segundo plano e trouxe os documentos que lia anteriormente. À noite, os geradores de campo embalavam o sono do tenente.

O incidente já havia desaparecido de sua mente a mais de uma semana quando durante o almoço, a comandante tenente Delacroix comentou com o primeiro sargento Gaziri sobre uma transmissão em canal oficial proveniente de pessoa não autorizada, que desapareceu tão rápido quanto surgiu.

Andrade então procurou os registros da primeira comunicação de dias atrás e os comparou com os do horário dito pela comandante. Então modificou dois dos comunicadores terciários para reforçarem os sinais do tipo de portadora utilizado e confeccionou gatilhos para enviarem respostas automáticas conforme houvesse uma conversação.

E no terceiro dia após as modificações, quando chegou a seu quarto, o sinal de disparo do gatilho estava alarmado. Mais que rapidamente chamou a comunicação gravada. A estática foi atenuada graças aos filtros Mitesh instalados nos comunicadores. Até mesmo a imagem tornava-se menos embaralhada e mostrava uma moça jovem, que aparentava pouco mais de vinte anos de idade, com curtos cabelos castanhos e olhos de cor violeta.

“... aqui é Naili, falo de Katrin, cidade estado do continente secundário de Titânia Primus.”

“Aqui é o tenente Andrade, da nave de apoio Ganimedes, você sabe que está em um canal não autorizado para civis.”

“Oh céus, sim, escutei isso, mas não consigo um canal diferente, nenhum deles atravessa os campos, tem muita interferência ultimamente.”

“O que você quer Naili?”

“Quero apenas conversar com o mundo externo.”

E então a comunicação cessou. Andrade congelou a imagem de Naili e adicionou novos filtros para coloca-la mais nítida, e viu que ela era uma mulher que fazia sua respiração mais intensa e profunda. Deitou-se ainda com a visão dela pairando sobre ele. Os estalos distantes de manutenção não atrapalhavam seus pensamentos e então dormiu profundamente.

Por mais de três meses padrão o Tenente Andrade e Naili conversaram todos os dias. Ou em tempo real ou através dos gatilhos de gravação. Ela contava sobre sua vida, sobre seus estudos, de suas pesquisas em psicologia, de como o sol estava sempre belo em seu planeta e de como seu povo era extremamente fechado, praticamente xenofóbico, dentro de seu próprio mundo. Falava que não queria mais ficar ali, nem gostaria de ter filhos naquele lugar tão distante, que apesar muito bonito, a fazia se sentir isolada.

Ele falava sobre sua profissão, seus gostos, sua paixão pelo som do cosmo e como o irmão mais velho o influenciou a entrar para a frota, depois que ele se formou em engenharia e dizia que em menos de um mês voltaria para a principal porção de terra de Delia Argenti, a lua habitável de Epsilon Major, seu sistema natal. Falar de ir embora, algo que ele desejou por tanto tempo, agora doía um pouco, pois ele sabia que um sinal com aquela qualidade não conseguiria ser direcionado para seu lar.

Os dias passavam e eles se tornavam mais íntimos com o tempo. Durante seu turno de trabalho Andrade lutava para retirar a voz e imagem de Naili de sua mente.

Faltavam apenas dezesseis dias para a Ganimedes retornar para a base estacionária em Epsilon Major para iniciar a troca de tripulação, quando um chamado corriqueiro de trabalho chamou a atenção do tenente Andrade. No sistema de comunicação interna da espaçonave o capitão Vital anunciava a partida para a manutenção e apoio a um gerador importante no planeta Titânia Primus. Seu coração bateu com mais força, sua mente elevou-se. Ele parou para prestar atenção ao ambiente, na esperança inútil de conseguir escutar o som dos cálculos quânticos serem feitos para a viagem entre os sistemas estelares. Após horas de matemática quântica e de armazenamento de informações, os motores foram disparados e em menos de um dia ele estava finalmente em frente ao imenso planeta azul esverdeado chamado de Titânia Primus.

Quando a comunicação retornou, Andrade chamou imediatamente o sistema para avisar a Naili de sua chegada. Ela deu saltos de felicidade, alegria real, vívida. Ele se sentia nervoso e feliz. Eles marcaram as coordenadas para se encontrarem.

Enquanto a equipe de manutenção do gerador iniciava o preparo, Andrade pegou uma nave de abordagem e se dirigiu para o ponto de encontro que haviam acordado.

O céu em Titânia Primus brilhava mais do que ele imaginava, ligeiramente diferente do que via nas transmissões cósmicas, o planeta era quente demais para aguentar alguns tipos de vida sobre sua superfície. Não estranhamente os veículos que via eram lacrados. Ele aportou no prédio onde ela morava. Desceu da nave de abordagem e andou por corredores que eram iluminados por luzes indiretas, que mais pareciam iluminação auxiliar, no prédio havia um sistema de resfriamento que fazia seus ossos congelarem, aquilo era uma mudança de clima brusca em relação ao mundo externo.

Andrade viu milhares e milhares de pequenos contêineres que se empilhavam uns sobre os outros. Olhou para o comunicador portátil onde Naili sorria, e então seu sorriso desapareceu, dando lugar a uma face de dúvida e consternação. Ela perguntou por quê o rosto de Andrade estava tão triste e distante.

“Naili, infelizmente não poderei te encontrar. Meu comandante exige que toda a equipe se empenhe na manutenção do gerador, caso contrário poderia haver uma catástrofe. E infelizmente, após essa manutenção iremos embora imediatamente, pois houve um chamado de igual intensidade em outro planeta”.

O tenente Andrade subiu na nave de abordagem e partiu para Ganimedes.

Naili não entendeu o que havia acontecido e chorou muito por não ter visto seu querido Carlos Andrade naquele dia. Contudo quando ela voltava à encontra-lo de serviço, durante os anos que se seguiram, sempre conversavam animadamente. Não viveram um amor carnal, mas sempre mantiveram um amor fraterno, carinhoso e uma amizade que transcendia a ambos. Ela se casou e teve filhos e colocou o nome do mais velho de Carlos.

O tenente Andrade jamais contou a ela que quando ele aportou no planeta viu que eram uma sociedade lacrada, um grupo de pessoas que por gerações mantinham suas vidas dentro de uma realidade virtual comunitária. Tantas foram essas gerações que eles já não tinham noção de que estavam presos a máquinas. Para eles, aquilo que viviam era real. Durante o pouco tempo em que esteve em Titânia Primus, Carlos tocou o esquife onde estava o corpo físico de Naili e pela primeira vez na vida sentiu o que é silêncio.

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