quarta-feira, 6 de junho de 2012

O Rastro da Sombra Rubra – Um conto nos mythos de Cthulhu

Não houve sequer um dia em minha vida que aquele terror do passado não viesse à minha frágil mente. Nas horas sombrias da noite, as imagens funestas de meu passado me assombram, com seu rastejar maldito e os sons guturais que permeiam o que ainda sobrou de minha debilitada sanidade.

Passei uma boa parte de minha juventude em uma casa de reabilitação mental, um manicômio, caso queiram usar o jargão popular, minha família não acreditou em mim, nem os médicos ou meus amigos, apenas Samanta sabia que eu dizia a verdade e ela estava em pior estado do que eu, quando nos encontraram.

Já faz três anos que ela morreu e eu agora estou velho e indo ao seu encontro, assim como também me reencontrarei com minha saudosa esposa Odete e meu filho Júlio, que faleceu ainda jovem, devido à pneumonia.

Conto o que aconteceu porquê mais cedo ou mais tarde, quando a noite derradeira se apossar de mim, a fazenda, que é de minha posse, no interior do estado, será passada aos meus descendentes, e eu não desejo que eles entrem naquele terreno amaldiçoado.

A muitos anos eu era um jovem estudante de direito e andava sempre com o mesmo grupo de amigos, também jovens, inteligentes, audaciosos e com uma queda para o estudo das artes ocultas. E foi Milton que encontrou o ídolo de marfim semelhante a um disforme touro com oito patas e cabeça de besouro. Foi ele que invadiu a biblioteca da universidade e durante a noite estudou o profano livro de magias conhecido como De Vermis Mysteriis. E foi Milton que nos convenceu, sem muito esforço devo admitir, a fazermos o ritual de conjuração da entidade que era aprisionada no ídolo.

Todos aceitamos com entusiasmo, mesmo descrentes de que haveria realmente uma entidade naquele pedaço de marfim. Valeria a viagem, a diversão e uma folga dos terríveis afazeres que havia na faculdade. Eu ofereci uma fazenda, de posse de minha família, no interior, para compormos aquele jogo e para lá nos deslocamos.

Tudo era levado com seriedade pela maior parte do grupo. À exceção de Samanta, que estava lá apenas para nos premiar com sua bela aparência e formas esculturais, que ainda possuía uma extrema capacidade de raciocínio e observação.

A noite era perfeita para aquilo que achávamos que seria apenas uma brincadeira. Lua cheia, nuvens distantes e o brilho constante de relâmpagos no horizonte. Desenhamos os símbolos necessários para aquele ritual, acendemos várias velas e nos sentamos na borda dos desenhos. Estávamos em um dos quartos que ficavam no andar de cima da casa principal da fazenda.

Milton iniciou o cântico profano. Em suas mãos estavam as anotações do livro De Vermis Mysteriis. Eram páginas copiadas com paciência, repletas de marcas e guias que não permitiriam ao conjurador, a figura do Rei, a pedra, o sol, de se perder. Milton havia lido exaustivamente aqueles parágrafos medonhos por noites a fio.

A voz de meu amigo era ritmada e as palavras pronunciadas em uma mistura de um latim precário, com passagens em árabe e trechos em uma língua que não eu reconhecia por completo, mas que provavelmente era dos homens de Leng, com sons assobiados e uma melodia ininteligível aos meus ouvidos.

Até aquele momento tudo não passava de uma sombria brincadeira. Samanta soltava discretos risinhos ao meu lado, mas Judite sentia seus ossos doerem. Era possível escutar o chacoalhar de suas pernas, braços e mandíbula. Ela, que obviamente estava naquela situação apenas por gostar de William, perdia suas forças à medida que o tempo passava.

Quanto a mim, eu ainda era um cético com um toque de estranheza. Eu via aquilo como uma grande farsa, um jogo muito bem orquestrado por Milton.

Quando o pequeno ídolo de marfim começou a soltar um constante zumbido, e a luz das velas pareciam se movimentar com um vento fantasmagórico que não soprava e não sentíamos, então sim, comecei a duvidar que meu ceticismo e minha descrença fossem realmente tão arraigadas aos meus conceitos. Um sorriso nervoso brotou em meus lábios, o suor fluía de minhas têmporas e de minhas mãos, tornando-as escorregadias, o que deixava difícil segurar a pequena faca e o pedaço de corda grossa de cânhamo com um nó simples que eu deveria manter firme durante todo o ritual.

O cântico continuava e sua intensidade crescia a cada palavra proferida. Milton era tomado pelo prazer de fazer parte daquele caminho que não deveria ser percorrido. As palavras eram gritadas e os olhos de meu amigo estavam tão abertos que parecia que seus globos oculares saltariam de suas órbitas.

Samanta gargalhava como uma louca, gargalhava de uma forma que não conseguia se conter. Seus dentes expostos em um sorriso macabro, sua respiração trabalhando parcamente entre um surto e outro de risadas histéricas, seus olhos estavam extremamente vermelhos, marejados, possuíam uma aparência demoníaca. Recordo-me hoje, posso dizer, que ela estava fora de si, mas de alguma maneira parecia que pedia ajuda, gritava por socorro, com aquele olhar assustador.

Judite mostrava um comportamento extremo como o de Samanta, mas de outra maneira, ela chorava copiosamente. Chorava tão intensamente que suas lágrimas banharam seu vestido. Seu corpo tremia cada vez mais, de uma maneira que eu jamais havia visto na vida. Eu queria ir em seu auxílio, mas não conseguia me mover, ou não queria me mover, ou tinha medo de me mover, não sei precisar. Ainda vejo em minha mente, agora, mesmo anos depois, como ela colapsou no solo, debatendo-se tal qual uma mulher possuída por seres imateriais. Seus braços e pernas chocavam-se tão violentamente contra o solo que não demorou muito para ouvirmos o som característico de ossos partindo, mesmo com todas as palavras gritadas por Milton. E ainda com os ossos quebrados e berrando de medo e dor, o espetáculo macabro não se findou, pois Judite não se acalmou e continuava em seu embate sobrenatural.

Aqueles movimentos inumanos, próximos do impossível, traziam-me náuseas, que tornaram a profusão do suor mais intensa, ensopando meus trajes, fazendo-me sentir imundo. Minha garganta estava seca, arranhava a cada respiração e o vento inexistente soprava mais forte levando a luz cada vez mais para próximo do ídolo de marfim, que zumbia, zumbia, zumbia e nos deixava loucos.

Segurei com força os objetos que estavam em minhas mãos e busquei ignorar as sombras dantescas que se formavam ao nosso redor. Imagens fugidias de criaturas não nascidas apareciam e desapareciam nas paredes e eu poderia jurar que buscavam mastigar minha alma.

Aquela torrente de informações nos açoitava mais e mais e então o ídolo de marfim tornou-se azulado e depois vermelho e por fim se rachou em cinco distintos pedaços.

Milton cessou seu cântico e deixou seus braços caírem ao seu lado. Samanta conseguiu controlar seus risos histéricos e respirava profundamente, extremamente cansada, enquanto Judite não esboçava nenhum sinal, não se movia, não parecia estar viva. Eu prendi a respiração.

Foi quando vimos que Judite começou a se movimentar, contudo ela se movimentou de uma maneira inimaginável, e mesmo naquela luz bizarra percebemos que seu corpo inerte era levantado ao ar por presas obscuras, de formato duvidoso, mas com força suficiente para arrancar grandes nacos de carne do corpo de Judite.

O grito que Samanta proferiu ao ver nossa amiga ser devorada nos despertou daquele torpor de assombro. Segurei o braço de Samanta e a puxei para fora da casa. Não tenho vergonha de dizer que eu estava apavorado, que o medo que eu sentia daquele mal sobrenatural me deu forças para correr daquele lugar maldito.

O desespero então se apossou de mim. Olhei para trás uma vez e vi a sombra disforme que se movimentava de uma maneira completamente diferente do que eu já havia visto. Havia patas que patiam no solo como o tambor tocado por mil homens condenados, mas não se movimentava apenas com elas, também se arrastava com sua enorme barriga, de cor de sangue, um sangue vermelho escuro, apodrecido, que exalava um fedor macabro, vindo direto dos reinos da morte. O arrastar era muito mais angustiante do que o andar. E eu corri, como jamais havia corrido em toda minha vida.

Samanta caiu e recebeu um corte profundo na parte interna da coxa. Gritou de desespero e dor, admito que por muito pouco não a deixei lá. O medo que preenchia meu corpo era tão avassalador que eu não conseguia pensar direito. Exitei, parei por um momento e com forças que me eram desconhecidas consegui fazê-la correr novamente. Não importava a quantidade de sangue ou a dor que ela sentia, ela devia correr, e correr o mais veloz que seu corpo aguentava.

O andar macabro e o rastejar alienígena da monstruosidade se aproximavam e quando veio num átimo que não haveria salvação, a criatura parou de nos perseguir. Observei incrédulo aquela besta abissal urrar de ódio e fome, aquele som me deixou com os cabelos brancos instantaneamente, mas vi que ela não chegou a atravessar o pequeno regato que havíamos ultrapassado poucos instantes atrás.

Não perdemos tempo especulando sobre se seria possível ele atravessar ou não aquela corrente de água, fomos embora, mas nossas mentes estariam maculadas para sempre com a consciência da existência daquele horror, que agora vagava pela terra onde nasceram meus avós.

2 comentários:

  1. eu li em uma revista que algumas drogas causam esses efeitos. Gostei.

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  2. Esse não é o tipo de literatura que vou ler para meu filho, hehehe
    Muito bom!
    Abraço

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