segunda-feira, 5 de setembro de 2016

A Vergonha de Jonas - um conto de Mago o Despertar

<A algum tempo escrevi um conto para o concurso Eu, Criatura, da Devir.Era um concurso onde escrevíamos um conto, em primeira pessoa, sobre uma criatura baseada no mundo das trevas da White Wolf.

Fiquei em segundo lugar com o conto "A vergonha de Jonas", a história sobre um mago que teve problemas familiares e deve enfrentar seus demônios internos para tentar recuperar o tempo perdido.>

A Vergonha de Jonas

Um conto de Mago o Despertar

Finalmente estou próximo de casa. Meus braços estão cansados de carregar os três sacos de papel abarrotados de ingredientes importantes para o ritual de hoje. Eu ando pela calçada suja que sempre me surpreende com seus padrões de rachaduras e reverberações ocultas. A rua, como sempre, está repleta de mendigos, tomada pelos mesmos fedores com os quais já estou acostumado, mas morar aqui não é tão ruim quanto muitos imaginam: sempre há algo interessante para fazer ou observar. Tão logo chego à porta que dá para a escadaria que leva ao meu apartamento, um dos mendigos estende a mão em busca de uma ajuda. Vejo a influência direta dos espíritos sobre ele. Quem sabe, mais tarde, eu possa até tentar fazer algo, mas por enquanto lhe dou apenas uma moeda, para ver se ele me ignora.

Enquanto subo as escadas, recito o feitiço para destrancar a maldição que protege nosso lar e entro no apartamento. Vejo a sala bagunçada, como sempre. Há papéis posicionados de forma estrategicamente desordenada, e as almofadas estão todas juntas no sofá mais próximo do aparelho de televisão. Certamente um dos outros estava assistindo àquele filme horrível que passou hoje mais cedo. Ponho os sacos de lado, por sobre a mesa redonda de madeira, entre uma pilha de livros de filosofia e a estatueta de cobre que contém um fragmento abissal que eu e minha cabala prendemos para estudo posterior.

Eu olho ao redor para verificar se estou realmente sozinho. Realizo um feitiço simples, de localização, para tentar saber se há alguma entidade diferente no recinto. Não percebo nada além de um pequeno espírito rato que serve a Dekla, um de meus associados. O espírito, que Dekla chama de Artur, desliza intangível entre três grandes jarros de porcelana contendo águas do monte Sião, da serra da Canastra e da ilha de Páscoa.

A imagem de Shiva, que está na parede ao lado da estante com bonecos de vidro, me observa enquanto me movimento, mas é apenas um feitiço conjurado por Vima Maris, minha outra associada. Ela diz que aquilo é uma bela “expressão artística”… Eu discordo. O quadro com cachorros jogando sinuca, que fica bem ao lado, é um toque meu. Aquilo sim é arte.

Normalmente, um ritual como o que farei deveria ser executado junto com os outros membros de minha casa, mas várias coisas me impedem de fazê-lo com eles, principalmente a vergonha de expor meus segredos mais ocultos a meus amigos. Eu devo encarar a vergonha sozinho, devo enfrentá-la e, preferencialmente, tomá-la minha serva.

Sempre ouvi falar dos magos que praticavam a goécia, um conjunto de preceitos que permitem ao conjurador arcano externar e encarar seus demônios internos, seus pecados, seus erros, e esse tipo de coisa ruim que ninguém quer que os outros saibam. Muitos comentam que os magos que conseguem esse feito tomam-se mais eficazes, entretanto outros dizem que apenas conseguimos ver o que realmente deveria ficar escondido do mundo e de nós mesmos.

Só que não posso mais evitar. Depois de tanto tempo, precisa. rei enfrentar um erro que cometi no passado. Preciso enfrentar minha maior vergonha.

Descanso algum tempo para recuperar minhas forças e minha coragem. É hora de me preparar para o ritual. Tomo um banho demorado. Meu corpo precisa estar limpo externamente para não influenciar as ressonâncias místicas do sagrado local de trabalho arcano que temos em casa.

Raspo a cabeça até não haver nem sequer um pelo. Passo o óleo que comprei para o ritual. O odor de casca de árvore recém-cortada preenche o lugar. Visto a túnica vermelha previamente preparada com os símbolos de minha cabala e me dirijo ao Sacrário.

Desenho o pentagrama de Atlântida e todos os outros símbolos de que necessito no chão extremamente limpo daquele lugar sagrado. Eu sei que já o desenhei uma centena de vezes antes, entretanto busco fazê-lo com o maior capricho possível. Ponho uma representação de cada parte da vergonha que sinto em cada uma das pontas. Meu corpo treme de nervosismo. Posiciono-me ao centro e ergo os braços, com uma faca na mão direita e a máscara ritual na esquerda: a vontade e a passividade, o ato e o modo. Abro minha boca, seca de tamanha inquietude, e dela saem poderes. A suprema língua falada na antiga Atlântida percorre o ar e atinge o universo com a força de minha vontade, com o sopro de meu conhecimento, com o influxo de meu desejo. Eu rasgo o tecido da realidade com uma arrogância que sei que deverei rever em tempos que ainda virão. Meus olhos vislumbram os medos que sinto de mim mesmo, enquanto percorro lugares sombrios de minha mente, onde meus demônios se escondem. Grito meu falso nome, o nome que me esconde do universo e das vontades dos outros, e então sussurro meu nome verdadeiro. Uma isca para quem eu quero capturar e enfrentar. Eu digo a data do acontecido e percorro nulidades brutais de feitiços de proteção que nem mesmo eu sabia que havia conjurado. Vejo os padrões ressoarem como água suja e o fedor do medo do desconhecido. As cores que passeiam variam entre o absurdo e o retórico.

E então a vejo, face a face. O demônio possui as expressões de minha filha em metade de sua carranca e a semelhança a mim mesmo na outra metade, costuradas com pontos grosseiros por um cirurgião agourento. Seu corpo lembra roupas rasgadas, vestidos infantis e algodão velho, que se misturam a uma nuvem de mentiras amareladas em forma de pequenas raízes.

Eu conheço cada parte desse meu demônio de vergonha. Eu sei por que cada detalhe se mostra com essas formas, e é justamente por saber disso que não consigo olhar diretamente para minha própria criação.

Ela vem em minha direção, com seu movimento desconcertante, que me faz ter ânsia de vômito. A metade da face que se assemelha a Vanessa me encara de maneira acusadora. Baixo imediatamente o olhar. Ela grita com a voz esganiçada de uma menina que nem sequer conheci e pergunta aos berros o porquê do abandono. Ela me pergunta por que eu a abandonei ainda no início de sua vida. Ela cospe as verdades que rasgam minha cara, que começa a sangrar como se milhares de pequenas feridas explodissem de súbito. Eu não tenho resposta para dar, todavia estendo a mão e mostro minha intenção de chamá-la para o mundo onde vivo.

Ela pergunta por que faria isso, enquanto me xinga e me humilha com coisas que sei que são verdades. Eu respondo que não posso mais guardá-la dentro de mim, pois algo estranho aconteceu há poucos dias, e que, se eu mantiver a vergonha de ter abandonado uma filha, talvez ela não mais possa ser encontrada, nunca mais. Não com vida ou, pior ainda, não na forma que ela poderia assumir em todo o seu esplendor.

O demônio de minha vergonha gargalha de uma maneira que me faz desejar chorar. No mesmo instante, fico pálido, sinto frio, e é como se minha respiração desaparecesse. A sensação é a da proximidade da morte, mas é apenas meu demônio me tentando. Ele faz transbordar em mim um sofrimento agudo, um arrependimento, com uma agonia que lacera minha vontade. Ele gargalha e grita um sonoro “sim”, mostrando a mão rasgada e amarelada, segurando a minha com força.

Eu o puxo para a realidade e forneço as âncoras que o suportarão nesta existência.

Ao fim do ritual, quando volto a mim, minha vergonha está a minha frente, como um fantasma do passado. Sinto-me aliviado por saber que não a tenho mais em meu interior. Eu olho para ela e sorrio de forma traiçoeira, apesar do desgosto que sinto em saber que ela existe. Aponto o solo e ela se dá conta de que está contida em um círculo de restrição. O demônio de minha vergonha esbraveja suas ofensas enquanto o poder reescreve o mundo ao seu redor. Eu o aprisiono em um livro sem texto que fabriquei com minhas próprias mãos dias atrás. Ele me amaldiçoa ao tentar se libertar das amarras que o controlam. Eu fiz meu dever de casa e parece que funcionou.

Agora tenho coragem suficiente para ir atrás de Vanessa e tentar convencê-la a entrar para a ordem de seu pai. Um pai que ela nem sabe que existe.

Um comentário:

  1. Medalha de prata. Merecia ouro
    Você tem um talento incrível para escrever. As suas histórias fluem, prendem o leitor e causa ansiedade para saber o desfecho.
    Parabéns!

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