segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

As damas Técnicas - um conto de fantasia e tecnologia


As Damas Técnicas

O sonho foi calmo e a respiração mostrava que havia paz naquele sono. Mesmo com a face característica dos que dormem era possível observar um ligeiro sorriso, bem no canto da boca de Dama Jéssica.

Havia um equilíbrio nos sutis movimentos que suas pernas desenhavam. A maciez de sua pele gerava um som agradável de encontro com os tecidos delicados de suas roupas de cama.

Era bom saber que nada iria atrapalhar aquela mulher enquanto ela dormia, nem mesmo os sons do início do dia a perturbariam em seu quarto.

O tempo passou na quantidade correta, o que permitiu a Jéssica recuperar suas forças, suas energias. Seus olhos então se abriram e com uma preguiça típica daqueles que não devem nada, ela esticou os braços e ronronou enquanto pedia delicadamente para o sono se afastar.

Não fez menção de se compor ainda, apenas ficou ali, deitada, contente com tudo o que possuía, com todo o seu histórico, com tudo o que havia acontecido.

Sua mente vagava pelos deliciosos momentos que completaram o coroamento de sua existência na noite anterior. Seu corpo se lembrava de todas as carícias que recebeu fazendo-a atingir, várias vezes, prazeres que reforçavam ainda mais sua condição feminina.

Espreguiçou-se como uma felina e soltou pequenos sons que demonstravam o quanto havia dormido bem. E então, com o início real de seu despertar, as cortinas que separavam seu quarto do quarto das amas se abriram e antes mesmo que seus primeiros movimentos terminassem Inês e Inátia estavam ao seu lado, prontas para limparem-na e alimentarem-na.

Ambas ajudaram a levantá-la e conduziram-na para a banheira, da mais pura porcelana, vinda das terras muito além dos vales de Aurora. Ela apenas permitia se levar e iniciou as liturgias matinais, conforme sua posição, títulos e graças.

- A senhora dormiu bem e bastante após a saída de Dom Hector. - Inês deixava que uma linha de água perfumada caísse sobre o corpo de Dama Jéssica, por entre seus seios firmes, sua barriga firme e bela, devido à rotina de exercícios diários, e por sua vagina fértil, desprovida de pêlos e satisfeita com os dotes de recebidos.

Jéssica sorriu mais uma vez, enquanto desfrutava daquele momento. - Sim, eu estava cansada e satisfeita, sempre que ele me visita me sinto mais leve. Tenho certeza de que são aquelas mãos . Ah, tenham cuidado que ainda estou sensível.

- Sim senhora. - disseram as amas, enquanto continuavam com seu trabalho.

Após o demorado banho e um farto e balanceado desjejum Jéssica caminhou em direção ao quarto de engenharia de mecanismos. O caminhar da Dama era preciso, com insinuâncias em suas curvas que respiravam sensualidade e determinação. Seus pés descalços tocavam suavemente a pedra lisa e lustrada dos salões por onde desfilava. O Castelo do Jardim encontrava-se particularmente cheio naquele dia, com um sem número de visitantes de várias partes do Império. Eram Damas e Dons, campeões, arautos, pajens, daminhas, várias comitivas e principalmente os guerreiros e guerreiras dispostos e intensos, a maior partes deles já vestidos, conforme os rituais pediam, esperavam do lado de fora, enquanto os outros ainda nus, assim como Jéssica, vestida apenas com suas joias exóticas e leves adornos, aproveitavam calmamente os prazeres que a vida lhes presenteava.

A música que ecoava pelo ambiente enchia de júbilo o coração dos presentes. Ela era grandiloquente, escolhida com precisão matemática e sensibilidade para harmonizar aquele dia importante. A canção compactuava com o caminhar elegante da Dama e permitia a ela que soubesse de sua importância em todo aquele cenário.

Após mais alguns metros e uma troca rápida de carinhos e amenidades com alguns convidados, ela chegou ao quarto de engenharia de mecanismos, com suas flâmulas vermelhas com os símbolos do Castelo do Jardim, que pendiam do teto e tocavam o chão, ornando as portas de vidro esfumaçado.

As duas sentinelas que compunham e guardavam o quarto de engenharia de mecanismos vestiam as cores do Castelo e abriram caminho para que a Dama entrasse. Era uma dupla formada por um homem e uma mulher, ambos muito altos e fortes, mas ligeiramente menores do que Jéssica. Ela sorriu e entrou.

As portas se fecharam atrás dela, deslizando silenciosamente.

A fragrância de flores campestres que agraciavam o castelo foi imediatamente substituído pelo cheiro de ozônio e químicos controlados.

O distante zumbido dos filtros de ar eram a música solene daquele quarto sagrado.

A limpeza do local era impecável. A câmara era revestida de metal polido no chão e grandes placas muito bem assentadas de mármore branco nas paredes. As luminárias bem colocadas distribuíam a luz de maneira uniforme por todo o quarto. Dois painéis grandes, com oito metros de comprimento por seis metros de altura brilhavam com as as informações pertinentes do trabalho. A luz ressaltava os trajes de combate que se encontravam próximos às paredes, à exceção de um traje de quase três metros de altura, humanoide, de formas arredondadas, um colosso blindado com capacidade bélica fenomenal. Ele se encontrava com suas entranhas expostas, revelando o acento feito em seda e metais maleáveis, os manobradores que se prendiam aos membros do guerreiro, os extratores neurais e toda uma sorte de equipamentos que tornariam quem nele entrasse uma fabulosa ferramenta de destruição. O traje estava bem no centro do quarto, com vários visores, monitores, mostradores, cabos e tubos afixados ao longo de toda sua estrutura. Eram os minutos finais da avaliação histórica.

Próximas ao traje estravam as damas técnicas, que avaliavam as condições do mecanismo. Membras de uma ordem milenar, formadas na Imperial Academia de Ciências, as damas eram especialistas avaliadas geneticamente para suas funções. Muitas delas nunca formava uma família, pois preferiam dedicarem-se exclusivamente ao trabalho. Durante os anos de formação na Academia, o maior sonho entre elas era tornarem-se damas técnicas, responsáveis por trajes de combate, poucas eram as que tinham tamanha honra.

Jéssica aproximou-se com cuidado e as damas a saudaram com uma grande reverência. Elas a admiravam por sua coragem, compleição, altura, força, determinação e perícias marciais.

Ingrid, a mais nova das damas, fez com que ela se sentasse na confortável poltrona de couro que estava próxima. A postura de Jéssica ao se sentar era diferente do que apresentava até aquele momento. Sentou-se ereta, mas não de maneira desconcertada e sim como uma estátua vida de uma deusa. A dama ajoelhou-se e limpou a sola dos pés da guerreira com paciência, procedendo com preces antigas que vinham de tempos imemoriais. Após aquele sutil ritual conduziu Dama Jéssica para dentro do traje, onde ela se acomodou e sentiu-se em casa, mais uma vez.

O silvo suave ecoou pelo ambiente até que todo o metal do traje de combate se assentasse, gerando novos sons, que reverberaram pelo quarto, com assobios e o peso da máquina. As damas técnicas observavam cada detalhe do acoplamento, analisavam os mostradores e os grandes painéis e anotavam em suas planilhas as variáveis que talvez pudessem se tornar problemas num futuro.

Isabel, a única que era casada daquela ordem tinha audição absoluta e ouviu uma variação nos ressonadores de controle sináptico, que ela sabia ainda estarem alinhados, mas que em algum dia poderiam diminuir o tempo de resposta das ações da Dama e a interação com sua vestimenta.

Iana, a velha, aferiu os compensadores e controles das articulações. Ela sorriu com satisfação ao notar que não havia problemas nos sistemas pelos quais ela era responsável, as milhares de linhas de anotações preliminares e aferições não haviam sido em vão.

A experiente Irina reciclou os vários sistemas operacionais que controlavam cada uma das interfaces do sistema geral, o traje acomodou-se como um único conjunto, por vários segundos e então retornou a operabilidade com fúria e paixão. As marcações nos registradores e pilhas de dados eram o que ela esperava.

Idris, a prodígio que recebeu comendas das mãos do próprio imperador e foi convidada a ingressar na Grande Ordem dos Engenheiros, conferiu o gerador e certificou-se de que todo o traje estivesse abastecido e equilibrado, que cada sistema não fosse saturado de energia. Ela sabia que muitas guerras foram perdidas por erros na distribuição de energia e essa não seria uma falta que ela cometeria.

Todas fizeram seus trabalhos com profissionalismo e paixão. O sinal foi dado. Os monitores mudaram todos para verde e Dama Jéssica impôs sua vontade. O traje mecânico colocou-se em movimento.

O titã de metal e energia obedecia imediatamente a cada comando de Dama Jéssica. A cada passo que ele dava revelava as maravilhas da engenharia mecânica, do controle energético e da biomecânica.

Não muito tempo depois ela chegou à colina da vigília, os outros guerreiros e guerreiras já haviam se vestido. Jéssica se dirigiu à frente do exército e lá esperou pela batalha.

O sol brilhava forte, com um vento fresco que vinha do Grande Oceano, três dos sensores levavam essa informação diretamente à mente de Jéssica. De onde ela estava conseguia observar os dois exércitos que estavam alinhados e frente a frente.

Enquanto a Dama sentia em sua pele os contatos metálicos e a seda que a acariciava dentro de seu traje, uma maior sensibilidade tocou seu corpo. Ela passeava em sua própria memória e sorria se lembrando dos sentimentos da parte da manhã. A guerra se iniciaria em menos de trinta minutos e com a imagem do sabor noturno em sua boca, ela lutaria pela glória do Império.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O Filho de Anúbis - um conto de Scion (Hero)

O cheiro forte do incenso queimando trazia à mente imagens de deuses antigos, de sangue e fogo, de vida e morte, luz e trevas, de paz e de violência.

O odor inebriante era intenso, mas não tão intensa quanto a movimentação frenética que tomava conta dos salões subterrâneos da antiga fábrica química Burgoyne Burbidges em East Ham em Londres.

Tudo havia começado como um encontro da sociedade secreta da loja egípcia dos filhos do Nilo. Eles estavam reunidos para entregar a Muhamed al’Abbas, um emissário especial, o Livro dos Portais, uma relíquia sagrada de tempos imemoriais. Os rituais transcorriam conforme o cronograma, seguindo os desígnios dos deuses, entretanto o Destino transforma os heróis em peões em seu tabuleiro de jogos.

Dois minotauros, enviados por Gaedos, um dos generais dos inimigos, haviam aparecido de surpresa no templo oculto, onde os adoradores de Anúbis faziam seu ritual.

Doze tiros foram disparados por Muhamed em direção de Tisias, uma das enormes feras, que feria os seguidores desesperados. A munição consagrada ao deus da morte fez sua obrigação e derrubou a criatura de forma definitiva. Vários dos crentes nos antigos deuses encontravam-se feridos no chão, com suas vozes de agonia. al’Abbas gritou para que os seguidores fossem em direção aos túneis inferiores, e que ele também cuidaria do monstro restante.

Ele sabia que sua munição divina havia acabado.

Quando o último crente entrou no túnel, al’Abbas ordenou à porta que se fortalecesse, isso impediria aos inimigos de avançarem, o que protegeria os inocentes além de seus umbrais. Ela obedeceu.

Enquanto empregava os poderes de seu sangue, foi acertado em cheio. O chifre envenenado de Kakios, um dos monstros invasores, entrou fundo, atravessando costelas e perfurando seu pulmão esquerdo, por pouco não atingindo seu coração. O impacto o arremessou pelo ar, fazendo-o atravessar dois grandes arcos e então aterrizou com tanta violência que o barulho do partir de seus ossos ecoou pelo ambiente. O gosto ferroso de sangue preenchia sua boca e sua respiração estava dura, dolorida. A queda fez com que batesse a cabeça em um dos pilares próximos da porta que levava aos túneis inferiores, o outro minotauro, Tisios, estava lá, morto ao seu lado.

Kakios bufou alto e os olhos vermelhos da besta tornaram-se fogo vivo. Pôs-se a correr em direção de al’Abbas, com os chifres prontos para mais uma investida, o derradeiro ataque. Não havia muito mais o que fazer, com uma olhada rápida ao redor observou cada pequeno detalhe, com as poucas forças que ainda lhe restava consagrou o arco à sua frente ao seu nome e ao nome de seu pai, e obrigou-os a impedir a passagem do minotauro.

Kakios quase quebrou o pescoço quando atingiu a barreira invisível, construída com a vontade do filho de Anúbis. Ficou levemente abalado, contudo não desistiu de seu intento. voltou a atacar com ainda mais ferocidade. A cada nova investida a proteção suportava, mas era perceptível que ela não duraria muito tempo.

al’Abbas então pediu à morte um favor e tocou o cadaver caído de Tisias, fazendo seu corpanzil cravejado de balas se mover à sua vontade.

Quase no mesmo instante a barreira protetiva esfacelou-se em milhares de fragmentos. O minotauro raspou os cascos no chão e faíscas queimaram no ar. Então atacou com brutalidade, e quase alcançou êxito, mas sua sanha assassina o cegou e ele não notou que os chifres de seu antigo aliado, agora um desmorto ao comando de al’Abbas, havia entrado fundo em sua carne, rasgando-o por dentro. Debateu-se, espancou o cadáver ambulante, mutilou-o, mas foi tudo em vão. Faleceu embebido em seu próprio sangue.

O odor do incenso ainda era intenso e começava a fazer mais sentido agora, que tudo havia se acalmado. Não havia mais alvoroço e al’Abbas estava morrendo, ele estava próximo dos portões metafóricos que levavam aos reinos de seu pai no submundo. Deixou sua cabeça pender para o lado, tentando enganar a dor enorme que sentia, quase iniciou as orações pelo seu passamento, mas ouviu passos apressados vindos da entrada principal do templo subterrâneo, eram sons que sua audição legendária não confundiriam. Sorriu um sorriso entredentes e logo em seguida tossiu forte, com dores e então sentiu um alívio divino quando Hilda Falkensburg, a filha de Freya, da raça dos Vanir, clamou sua herança sobre a saúde e rezou à sua mãe para salvar a vida de al’Abbas. Ao seu lado também estava o rapper T.K. filho de Legba, dos Loa.

- Chegamos bem a tempo de te salvar, mais uma vez - a frase era dita por aquele homem magro, jovem, negro, com um sorriso largo, branco como marfim.

- Eu matei dois minotauros enviados por Gaedos, salvei vinte seguidores dos Pesedjet e vocês me salvaram? - os ferimentos já não mais doíam, o sangue estancou, a cor de vitalidade retornou ao rosto do belo e jovem filho de Anúbis. - De qualquer maneira, obrigado por virem, apesar da bagunça aqui, consegui pegar o que vim buscar. Agora preciso levar isto para o Egito. Volto a encontrá-los em dez dias.


O terreno pedregoso e escaldante que se encontrava abaixo passava rápido. Aquilo incitava lembranças ancestrais contidas em seu sangue. Muhamed al’Abbas al’Fadhal sentava-se em sua extremamente confortável poltrona em um avião particular Airbus A380, com bandeira privativa de sua empresa, a al’Abbas Petroleum, com braços na Arábia Saudita, Iraque, Kuait e Emirados Árabes.

Seu rosto esguio, de pele bronzeada, com um nariz insinuante era favorecido por olhos expressivos de um negro profundo, olhos de um verdadeiro predador.

Uma das muitas aeromoças lhe trouxe uma bebida refrescante. al’Abbas deixou-se quase sorrir ao observar as curvas da mulher que utilizava um uniforme de trabalho um tanto justo, que realçava sua beleza. Ela se afastou com uma mesura e movimentos sinuosos. Uma bela visão, pensou ele.

A bebida foi providencial, fez seu corpo relaxar.

Ele então olha para a mesa à frente e pega, pela centésima vez, o envelope em pele de carneiro, costurado e dele retira um rolo de papiro. O conteúdo do texto se faz presente em suas memórias novamente. Os hieróglifos cali contidos informavam um local, uma data, um nome e um mistério. O significado daqueles símbolos lhe era claro, familiar e preciso, mesmo sem jamais tê-los estudado. Ajeitou-se na poltrona e adormeceu. Despertou com a voz da aeromoça, que encontrava-se ao seu lado.

- Senhor, chegamos a Sharm el-Sheikh. Sua limousine já foi desembarcada do avião e o aguarda conforme solicitado.

Quando as pessoas pensam em Egito não costumam visualizar climas amenos, uma cidade linda, banhada pelo mar vermelho.

A limousine levou al’Abbas até um enorme hotel a oeste da cidade de Sharm. Um resort opulento, com vista para o mar vermelho, palmeiras, praia, um vento forte que refrescava, um lugar que acrescia à figura bem vestida de al’Abbas.

Não havia outros hospedes, todo o lugar havia sido reservado apenas para ele e sua comitiva.

Ele andou até a praia, retirou os sapatos e os entregou a um dos serviçais. O som predominante do lugar era o barulho do mar, que enchia seus olhos à sua frente, o som do vento em suas orelhas e uma música distante, de vozes esquecidas no tempo.

Caminhou com os pés descalços sobre a areia molhada até uma cadeira de praia feita de madeira. Lá encontrava-se um homem negro, de porte também esguio como al’Abbas, com olhos tão negros quanto o submundo e uma graça tão precisa que provavelmente saberia pesar a alma de um homem.

O homem apontou para uma cadeira ao lado da sua, onde al’Abbas se sentou e olhou para o mar.

- Trouxe o que me pediu, Inpu. Não foi fácil. Fomos atacados pelo inimigo, quase vim ao seu encontro mais cedo, pelo caminho sombrio.

- Mas você venceu, meu filho. Agora aproveite a brisa e contemple o infinito. Ainda há muito a ser feito e no mundo superior os titãs batem às nossas portas, tentanto escancará-las. Amanhã você voltará ao encontro de seus aliados e espero que em nosso próximo encontro me traga informações sobre quem Gaedos deseja despertar em Londres. Meu sangue corre em suas veias e tenho muito orgulho disso.

O sol se pôs, a escuridão tomou conta do mar, Anúbis voltou para sua morada celestial enquanto seu filho ainda apreciava as areias da praia deserta, sabendo que seu destino mais uma vez lhe afastaria de seu amado Egito e o levaria o levaria à ilha da Inglaterra. Ele sabia que esse era o seu destino, o destino dos heróis.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O Monstro Familiar - Um micro conto do Mundo das Trevas

Era sempre o mesmo sorriso tímido e o corriqueiro cumprimento bem mensurado quando encontrava com os vizinhos, ou os colegas de trabalho, ou algum conhecido. E foi com passos calmos e a respiração controlada que ele saudou aos que encontrava quando chegou à repartição onde trabalhava.

Sentou-se, ligou seu computador e pegou a xícara de café. Observou a superfície do líquido escuro e quente. A escassa espuma que ali existia formava, em sua mente, padrões que traziam suas experiências àquele momento e por um instante seus pensamentos foram além das paredes do prédio.

Ele lembrou-se do frio da noite, do suor sobre seu corpo e da excitação que sentira. Tudo já havia sido feito. Não houve problemas, nem sequer um pequeno transtorno. Tudo foi fácil, deliciosamente fácil. Como em todas as outras vezes, ele apenas agiu. Tantas foram as vítimas que o prazer havia se tornado mecânico e cada vez mais intenso. Ele não pensou nas consequências de seus atos, apenas seguiu com seu plano, parcamente elaborado, e foi saciar sua doença.

O café findou-se e o sabor amargo da bebida contrastava com o gosto doce da noite anterior. Ele observou ao seu redor, com calma, enquanto respondia aos e-mails do serviço. Um funcionário padrão e eficiente.

À mesa de trabalho, em frente de vários papéis e um monitor com planilhas de cálculos abertas, ele respirou fundo e por um momento olhou para suas unhas, irregulares, quebradas em pequenos pontos. Apesar de tê-las limpado como de costume, ainda "via", com os olhos da lembrança, a terra vermelha dentro delas. Em sua mente visualizou suas mãos cavando a terra seca, cavando fundo e forte, tanto que até feriu seus dedos. O corpo de sua última vítima ainda estava ali, perto, com o rosto virado para ele e com seus olhos mortos, vazios, a observá-lo, a saliva aflorou em sua boca mais uma vez, em profusão.

Os números e os cálculos tomaram seu tempo e mais um dia se passou. Seus colegas o admiravam por sua competência no ambiente produtivo e por sua simpatia - "Não se esqueça do churrasco no sábado, será lá em casa" um amigo dizia.

O sorriso amistoso escondia uma maldade latente, que ninguém jamais via. Ele fingia bem, escondia bem, era mais convincente do  que um ator profissional.

Vivia tanto aquela farsa que até as vezes quase acreditava nela. Quem olhasse em seus olhos veria um homem assustado, tímido, ingênuo até, mas sua boca salivava sempre que via uma vítima em potencial. Quanto mais inocente a presa, melhor. Aquele único ponto de descontrole era o que o denunciava.

Seu prazer sórdido, se sabido pelos que com ele andavam, os enojaria ao ponto de perseguirem-no, espancarem-no e esquartejarem-no em praça pública, horrorizados, como uma turba ensandecida, enquanto gritariam palavras como: "monstro", "abominação" e "aberração". E dormiriam preocupados por talvez existirem outros como ele, que também frequentavam suas casas e estavam perto de seus filhos, de suas esposas, maridos, mães e pais.

Contudo ele ainda estava vivo, sorridente, amigo, confiável, perigoso e acima de tudo incógnito.