terça-feira, 10 de julho de 2012

Fluxo Sanguíneo - um conto de raiva e vingança

Fluxo Sanguíneo - um conto de raiva e vingança

Escuto claramente o pulso impactante do sangue viscoso através de minhas veias e artérias. É um golpe forte, poderoso, que faz litros e litros do líquido ferroso correr através de mim, preenchendo cada capilar, levando vida a cada canto de meu corpo, e nesse momento mais específico, até além dele.

O sabor adocicado vem à minha boca mostrando que ainda estou viva, embora não por muito tempo. A vazão é constante e ouço os batimentos de meu coração, cada vez mais fora e ritmo, mas ainda lá. Começo a sentir frio, todavia não há dor, algo que eu não compreendo de imediato. Sinto apenas o frio, que se intensifica. Eu tremo e solto um gemido, não de dor, mas de tristeza.

Apesar do frio que me acaricia a pele e tenta levar minha consciência para longe dali, ainda lembro meu nome, Adriana, que tantas vezes escutei desde minha infância. Uma infância de menina quieta, embora sempre sorridente, de pele mulata e cabelos ao vento. Uma verdadeira mocinha recatada e com um olhar atento a tudo o que acontecia ao meu redor. Meu nome era sempre usado para demonstrar a boa menina que eu era, o quão educada eu era, o quão sorridente e comportada eu me colocava. Meu nome era dito com carinho. E a medida que eu crescia o nome continuava pronunciado com um tom suave, mas as intensões que eram impregnadas nas palavras não eram mais tão pueris e eu corava ao ouvi-las e apesar de muito satisfeita com as formas que meu corpo começava a apresentar, sempre soube me proteger e aceitar os lábios apenas daqueles que souberam me respeitar como ser humano.

Em minha pele apenas uns poucos escolhidos tocaram com carícias menos contidas e dentro de mim apenas entrou o valor de dois homens. E nesse momento um terceiro valor encontrou morada em meu corpo, uma lâmina fria, de um metal imparcial, cuja ponta aguda rompeu minha carne e a chapa afiada como palavras de violência cortava o tecido de minha epiderme, desvirtuando minha integridade, perfurou fundo, clamando com ódio pelo meu sangue e minha vida. Ela se alojou em mim.

Agora o pulso fazia jogar cada vez com menor intensidade o sangue e, pouco antes de meus olhos embaçarem, apenas um momento antes de me desligar da carne mortal, vi uma sombra, que em circunstâncias normais seria amedrontadora. Era um fantasma incorpóreo que segurava com uma firmeza inconstante o objeto que me roubava a vida.

Sua presença era tênue e tão palpável quanto um sentimento ruim e, enquanto olhava para mim, tentava agora sem tanta convicção, fazer com que a faca penetrasse mais e mais em minha carne.

Ali, perto de mim, era um fantasma e eu afirmo isso mesmo sem necessidade de convencer a ninguém. Sei disso porque noutra noite encontrava-me no banho e enquanto me limpava ouvi uma respiração profunda, bem próxima. Olhei ao redor, e também além da janela, não vi ninguém, nada que pudesse produzir tal som. Ouvi novamente a respiração e um ruído macabro que a seguiu, quase pronunciando meu nome - “Adriannnnnnnaaaa” - escutei e um calafrio percorreu meu corpo e mesmo na água quente fiquei arrepiada e me senti desconfortável.

Sai do banho e enquanto passava pelo espelho do banheiro eu o vi pela primeira vez. Não era definível, mas estava lá dentro, eu sabia, exatamente onde eu me entendia melhor. Reflexivamente olhei ao redor mais uma vez, sabendo em meu âmago que não encontraria nada.

De dentro do espelho eu vi olhos nas sombras. Era um olhar que me era familiar, que me trouxe emoções boas e ruins. Tentei, mesmo apavorada, me concentrar na imagem dentro do reflexo. Outro calafrio me percorreu e uma sensação paradoxal de desejo e medo interligados se apossou de mim quando no vidro vi Wagner.

Quanto amor eu não senti por ele? Por quê sua imagem me assombrava agora? Eu tentava encontrar alguma explicação científica para ver o homem de quem fui noiva, que me tornou uma mulher plena e que também me apresentou o medo como companheiro.

Wagner foi um grande amor. Talvez o primeiro amor verdadeiro que senti em minha vida, e ele também foi meu carcereiro. Ele me amava, tenho certeza disso, mas era um amor doentio, que só percebi corrompido muito tempo depois, quando seus rompantes de ciúmes começaram a transformar minha vida de um conto de fadas em um inferno de agonias.

Vivemos as maravilhas da vida e as dores do sofrimento, mas em determinado momento, consegui uma força além de mim e brigamos. E então, depois de muito tempo e muita dor física, mental e espiritual, consegui com que se afastasse. As marcas que ficaram em meus braços e meu rosto não foram nada comparadas às marcas deixadas em minha alma.

Ele tentou voltar comigo algumas vezes e, à exceção de apenas um único momento, onde deixei que meu amor por ele sobrepujasse meu medo, e onde mais uma vez ele mostrou que era mais monstro do que homem, consegui afastá-lo de meus dias.

Por muito tempo mantive-me constantemente em meu trabalho, lugar onde Wagner havia parado de vigiar, pois os seguranças conseguiram evitar suas visitas.

Foi nessa época que conheci Roberto, que me cativou com sua conversa gostosa, seu lindo sorriso e suas mãos grandes. Fomos apresentados por Silvia, uma amiga do trabalho com quem eu confidenciava alguns de meus momentos com Wagner. Não demorou muito e admito que me apaixonei por Roberto, talvez para preencher o vazio que foi deixado em mim, ou talvez porque ele me completava, me tornava inteira realmente. Aquilo era intenso e diferente.

Infelizmente Wagner soube de meu namorado e segundo me contaram, após beber muito além da conta ele estava tomado pelo ódio, um ódio diabólico que ultrapassava seu olhar, que tornava negra a sua alma. Foi-me falado que ele estava determinado a me matar e entrou em seu carro, e disparou em alta velocidade, e morreu ao se chocar frontalmente com outro veículo. O outro motorista e sua esposa também faleceram naquela hora.

Eu sei que não deveria, mas fiquei aliviada ao saber da morte dele. A partir daquele momento minha vida seria melhor, mais livre e com um homem que me amava e me respeitava.

Minha vida liberta e plena durou até o momento em que o ódio sobrenatural que Wagner nutria, aquele ciúmes diabólico, repleto de doenças emocionais e sua própria incapacidade de lidar com a rejeição, uma rejeição construída pedra a pedra por ele mesmo, ganhou força, escopo, determinação à medida em que minha felicidade junto a Roberto crescia.

Quando o fantasma nu de Wagner, etéreo, assustador, de coloração próxima a carne apodrecida e um odor repugnante de terra estéril, carniça e vermes, se apresentou à minha frente, na noite em que eu me preparava para comemorar dois anos de namoro, eu chorei copiosamente, uma onda de desespero tomou conta de mim, pois mesmo a morte não havia levado o homem que me feriu, que abusou de meu amor e que me prendia, que me impedia de ter uma vida.

Eu gritava alto, agudamente, desesperadamente. Gritava para ele me deixar em paz. Gritava com ele como nunca tive coragem de fazê-lo quando ele estava vivo. Ele não foi embora e por mais que eu quisesse eu não tinha forças para me movimentar, para fugir.

Os olhos espectrais dele cortavam minha vontade, feriam minha consciência, me tornavam ainda mais indefesa. Eu o temia e esse temor alimentava aquela sombra. Eu o amava e meu amor me prendia àquele chão. Eu o odiava e quando de súbito tive noção de que poderia direcionar aquele ódio para me libertar, senti a lâmina em meu seio, me matando. Ele havia finalmente roubado de mim, definitivamente, a minha felicidade, minha vida, minha esperança. Meu ódio tomou forma e então me desliguei do que eu era, tornei-me vazia, ódio e amor.

Wagner se foi. Quando concluiu o seu intento ele foi extirpado para sempre da existência, seu ódio o consumiu assim como a decepção de não ter vivido plenamente me consome.

Hoje vigio Roberto através dos espelhos, dos reflexos nas lâminas, por onde ele anda. Velo seu sono. Desde que ele arrumou um outro amor para ajudá-lo a suportar a dor de minha morte eu o vigio e à medida que o amor deles cresce, minha decepção e ódio crescem juntos.

Espero um dia ter a força que Wagner tinha e conseguir operar a faca que entrará fundo no coração de Roberto, mas também espero que quando esse dia chegar o amor que sinto pelo homem que me matou, o homem que desejo matar e o amor por mim própria superem meu ódio e decepção e que me impeçam de fazê-lo, libertando-me desses grilhões, permitindo que eu não seja consumida pelo ódio e que talvez, apenas talvez, encontre algo além, nessa inexistência do além vida.